João Vitor Gallo 02/10/2014
Uma visão muito simples sobre um objetivo muito complicado
Um bom livro, apesar de ser muito simples e até deixa uma impressão de extrema artificialidade, levando em conta tipo de ser humano que não existe, mas que mesmo assim levanta bons questionamentos. Uma sociedade perfeita é construída por pessoas perfeitas e com meios de existência perfeitos, infelizmente o mundo em que vivemos é composto pela escassez e por seres nem de longe tão perfeitos. As sociedades se formam como tal para que um grupo de pessoas possa sobreviver as adversidades, o que se torna mais fácil em grupo, embora o convívio seja problemático por vezes, justamente pelo ser humano zelar pelo bem estar pessoal, e isso é um traço do puro instinto de sobrevivência e autopreservação. O livro me lembrou em algumas partes justamente uma distopia, Admirável mundo novo de Aldous Huxley, acho que foi pela artificialidade dos habitantes da ilha. Sociedades perfeitas, muitas delas em ilhas, justamente para colocá-las em um aspecto de isolamento, são muito comuns nos mitos antigos também, como Lemúria, Atlântida, Shangri-lá, Hy Brasil, e até o próprio Éden e todas elas eram colocadas como algo quase inatingível, é a morada dos valorosos, e por serem divinas, também não possuem os problemas que existem nas terras dos mortais, é um desejo humano que se apresenta desde já, mas na prática é algo praticamente inviável se analisado racionalmente e sem deixar as paixões transparecerem, mas não custa nada sonhar, embora eu tenha medo de utopias, elas são prometidas, mas em seu lugar geralmente é entregue uma distopia.
Em uma parte do livro aparece a frase : aquele que tem a certeza de que nada faltará jamais, não procurará possuir mais do que é preciso. Mas infelizmente, em nosso mundo a escassez sempre se fez presente, e principalmente com a atual superpopulação do planeta, mas isso também fez o ser humano buscar, não apenas pela imposição da força, mas também pela criatividade e pela inventividade, achar novos métodos de produção e obtenção de recursos. Infelizmente, não podemos ter a ideia de nada faltará jamais, e o planejamento para o futuro é algo que é necessário a qualquer sociedade, crises não acontecem apenas por ordem humana, embora essas não devem jamais serem ignoradas, mas também por parte de desastres naturais. Uma sociedade tão habituada com a abundância e tamanha ordem poderia se reerguer com facilidade em uma crise dessas, mas também poderia ser um caos e o fim dela, se não soubessem como viver com pouco, a crise une as pessoas, coloca o que há de melhor nelas para fora, como tantas vezes visto, mas também faz aflorar o oportunismo e outros sentimentos ruins nas pessoas, mesmo a sociedade sem esses sentimentos na população, poderia surgir em um momento desses. No livro todos são perfeitos, mas na realidade não somos, passamos longe disso.
Interessante também é a ideia do bom selvagem, que ganharia força anos depois, com o romantismo sobre o homem que não foi maculado pelos vícios da sociedade moderna, até hoje alguns ainda apostam nessa tese, principalmente que os índios aqui viviam em paz antes dos europeus chegarem a essas terras, mas a História prova que não é bem assim, até mesmo os índios do nosso continente viviam em guerras e disputas por territórios, com seus Impérios e conquistas, com seus escravos e tributos, com a mesma sede de poder, a verdade nua e crua é que o ser humano é o ser humano em qq parte do mundo, independente de cultura, credo ou criação de qualquer tipo. Somos um só, com aspectos positivos e negativos, embora esses variem de povo para povo, com cada sociedade ditando o que é considerado ruim ou bom. No livro não são propriamente índios do continente americano, mas pessoas dessa ilha, até muito bem evoluídos como sociedade, mas que fogem do padrão europeu de civilização da época, eles buscavam em outros continentes o ideal de civilizações mais simples, mais ligadas à natureza e por isso mesmo, com menos vícios.
Quanto ao desprezo pelo ouro e prata, pode-se achar isso mais real, já que as coisas tem valores subjetivos, valem o que as pessoas acham que vale, e isso por qualquer motivo, raridade, dificuldade de fabricação, apego afetivo, utilidade ou por simples vontade de possuir. O próprio ouro é louvado pela cor e brilho, que se assemelha ao Sol, o primeiro deus cultuado pela humanidade. De qualquer forma se não fosse por ouro e prata poderia ser por qualquer outra coisa, mas como os habitantes da ilha já tem o que precisam e não tem necessidades é aceitável, mas ainda que eles pareçam ser avulsos a qualquer tipo de desejo, o que já é muito ficcional, no mundo real, o desejo se apresenta e nem sempre é por simples ganância, ou mesmo sendo um tipo de ganância poderia ser algo mais leve, como o desejo de colecionar, que antes de mais nada é hobbie e pode ser por qualquer coisa, desde carros até pedras sem nenhum valor monetário, daquelas que se pode achar aos montes pelo chão. O próprio dinheiro é uma ilusão, o valor é subjetivo como comentei, ele é apenas uma forma que as pessoas acharam de facilitar relações de troca, antes de papel ou moeda era usado o sal, por exemplo. Falar que o dinheiro é a raiz de todo mal é uma razão meio simplista, ou mesmo que é a ganância humana também o é, já que é um sentimento muito complexo e que se apresenta de muitas formas, mais leves e mais graves, enfim, o ser humano é muito complicado em todos os sentidos imagináveis. Mas é uma forma mais romântica de se imaginar isso, embora não seja a verdade absoluta, mas é um traço do pensamento ocidental, que é geralmente voltado para o maniqueísmo, de algo ou ser de todo certo ou de todo errado.
Enfim, é uma boa fantasia, é bom imaginar o mundo de forma utópica, embora em geral a nossa realidade cruel aponta mesmo é para algo mais distópico no nosso mundo, principalmente quando nos vendem utopias. Quando a esmola é muita o santo (não Thomas Morus, que é santo da Igreja Católica) desconfia, já dizia o saber popular. Há uma frase no livro que diz tudo: "[...] se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os próprios homens forem bons e perfeitos." O problema é quando seremos perfeitos? Provavelmente nunca, é pessimista de minha parte dizer isso, mas também é realista. É bom mudarmos e tentarmos evoluir como sociedade, mas a ideia do livro ainda é por demais fantasiosa se colocada com o que é o ser humano, essa criatura que foge muito do ser semi-divino que sempre imaginamos, e nos esquecemos que somos animais e vivemos por instinto tanto quando as demais criaturas desse mundo. Temos a consciência e a inteligência, mas temos o instinto gritando em nós também. Certamente serei chamado de pessimista por alguns por essa análise, outros talvez dirão que não acredito no ser humano, o problema é que justamente acredito, mas conheço não somente a capacidade construtiva, mas também conheço e não ignoro a capacidade destrutiva do homem, e também até nisso há algum bem, afinal são os conflitos que criam, não a conformidade, é a inconformidade, o debate, os opostos que se complementam e de onde surge novas ideias, o espaço criado, afinal, quando uma árvore velha cai na floresta, abre espaço para novas mudas crescerem naquele espaço. O espírito humano é o que é por ser inquieto, às vezes isso é excelente, em outras péssimo. E não deixo de pensar em um parte do filme Matrix onde comentam que os humanos rejeitaram a primeira Matrix que lhes deu uma utopia, ela falhou exatamente por isso, no fundo sabemos, até por nós conhecer, que as coisas quando estão lá muito boas, é porquê algo de muito errado está acontecendo, não sei se houvesse realmente esse tipo de sociedade se realmente a abraçaríamos ou a rejeitaríamos.
site: https://focoderesistencia.wordpress.com/2015/05/07/critica-do-livro-utopia/