Jamyle Dionísio 16/01/2022
Amor como-deve-ser?
Há vinte anos, herdei os livros de uma prima que tinha acabado de passar no vestibular para Enfermagem e não precisava mais da literatura obrigatória de escola. Entre eles, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade.
Lia tudo o que me caía nas mãos. Entendam: eram os anos 90. As livrarias, escassas. O tédio, um monstro pesado. E Mário de Andrade, um espanto! Aquela narrativa fluida, quase onomatopaica, grudava no ouvido (?) feito letra de música popular. Parágrafos e sentenças coreografados por um narrador por vezes fofoqueiro, por vezes deliciosamente distraído.
O enredo, em si, não tem muito de novo. Sousa Costa, o burguês que contrata uma ?governanta? alemã para conduzir a iniciação sexual do filho mais velho, Carlos. Elza/Fraulein, a alemã que se julga racial e moralmente superior, e que tece ilusões sobre seu ofício: ensinar o amor ?como ele deve ser?. Coloquemos todos juntos num casarão da avenida Higienópolis. Adivinham? Pois bem.
Mudou o cenário? Nem tanto. Mário de Andrade mesmo disse que Carlos era o típico rapazote brasileiro oitocentista, mas que ainda hora encontramos por aí. Fraulein? Imagino-a retornando à Alemanha e se filiando ao Partido Nazista. Tivesse nascido no Brasil alguns anos depois, teria votado nos dois turnos das eleições presidenciais de 2018.
(E pensar que era leitura de escola! Quem tem olhos para ler, que leia: trechos disfarçados, mas picantes, eu reconheci ali desta vez. Outros tempos. Tempos em que transformavam o país inteiro num puteiro. Hoje, transformam em igreja evangélica. Mas divago. Voltemos:)
Rascunhava, na época, uma historieta com um personagem alemão, e ali tinha uma alemã a me ensinar alemanices. (Não havia internet, só enciclopédia Barsa.) E eu, aprendiz, copiei na cara dura frases, expressões inteiras. Grudei trechos na memória, e o ritmo no subconsciente. Sou prisioneira até hoje. E esse é o triunfo de Mário de Andrade: essa escrita em brasileiro, tirar a oralidade das bocas e fixá-la no papel.
E reler esse livro foi como ouvir, de novo, um disco há muito guardado no porão. Um disco cujas faixas eu sabia de cor, gasto de tanto uso. Um disco que eu ouço de fora de mim, mas de dentro também.
@chadepalavra