Thereza 28/06/2020
Idílio
Esse é um daqueles livros que o enredo, em si, não é a parte mais interessante da obra. Assim, o modo como Mário concebe a narrativa torna-a interessantíssima a ponto de ser difícil largar o livro para continuar depois. Trata-se de uma estória bem cinematográfica. Temos 3 personagens principais: Elza (ou Fraülein), Carlos e o Narrador. A primeira é uma alemã que veio pro Brasil quando a situação em seu país começou a ficar difícil, mesmo antes da grande guerra. Ela tem esse jeito muito racional — que eu acredito ser, em partes, culpa de sua criação e também do fato de nunca ter tido chance de viver algo que lhe tirasse o fôlego (mas talvez eu seja uma brasileira úmida demais e por isso penso assim). O senhor Sousa Costa a contrata para que seja a governanta de sua casa, ensine alemão para as 3 filhas e seu primogênito, Carlos. Mas não será somente esta a função de Fraülein, ela também está incumbida de iniciar sexualmente Carlos e lhe ensinar o amor, o verdadeiro e prático amor, aquele que, segundo ela, vem sendo destruído desde que a filosofia entrou neste âmbito.
Então partimos para Carlos, o machucador. Ele machuca quando tenta brincar com as irmãs, machuca quando ama. Não de propósito, mas é como se ele não soubesse interagir com leveza. Essa intensidade é o que mexe com Elza, é o que a faz estremecer mesmo estando sob serviço, tendo consciência de que a aproximação será temporária, até que ele esteja pronto para o mundo e não se perca com prostitutas, drogas e jogos de azar.
“O que não é visível, existe?” Acredito que essa frase, mesmo que usada por Mário em outro momento da narrativa, expressa bem o início do tal romance entre as personagens, o início da vida sexual de Carlos. Porque somente depois de Fraülein ser confrontada por outra personagem sobre as intenções de Carlos, é que ela consegue enfim dar o primeiro passo para que eles comecem a se envolver. Um detalhe que me incomodou muito: Elza ter 35 anos e Carlos 15.
Nesse ponto podemos começar a refletir sobre o sentido do título. Amar, Verbo Intransitivo parece, num primeiro momento, gramaticalmente incorreto. Mas será possível ensinar a amar? A função de Elza naquela casa é essa, mas logo entendemos que o verbo amar, apesar de ser transitivo e precisar de um complemento que lhe atribua sentido, não pode, filosoficamente, ser transmitido entre sujeitos.
Mas então um fato interessante nos salta aos olhos: Elza ama Carlos. Ela diz que não, mas o modo como lhe sente é, no mínimo, especial. Talvez ela tenha amado todos os garotos que iniciou ou Carlos pode ser diferente. O que eu sei e compreendi é que, talvez, ela o ame porque não teve chance de amar alguém realmente digno. Por Carlos é um burguês irritante, assim como toda a sua família. Todos são mimados, inclusive o pai e a mãe. Mas, se pensarmos que toda a estadia dela no Brasil foi recheada de famílias burguesas insuportáveis, talvez ela não conheça outros tipos de pessoas que possa amar.
E aqui nós entramos num pouco no ponto em que o enredo não passa nem perto de ser tão interessante quanto a construção de Mário de Andrade, gerando um livro muito representativo do modernismo. Ele permeia a estória de muita sensibilidade, mas nos conta sobre uma pessoa racional demais. Esse contraste suaviza e aproxima. Além do mais, sendo esse o primeiro romance de Andrade, é aqui que ele experimenta com mais liberdade o abrasileiramento que vinha construindo. Talvez esse movimento do autor tenha sido ainda mais feliz em Macunaíma, mas isso não vem ao caso. Na apresentação do livro, vamos saber um pouco sobre esse processo criativo, de onde transcrevo algo que ele escreveu sobre a própria obra:
“Pra que tenha literatura diferente é só preciso que ela seja lógica e concordante com terra e povo diferente. O resto sim é literatura importada só com certas variantes fatais. É literatura morta ou pelo menos indiferente pro povo que ela pretendeu representar.”
Aqui precisamos lembrar do propósito do movimento modernista, que teve como marco a semana de 22. Essa ideia de produzir algo daqui, algo que destoasse das influências europeias e representasse o Brasil. É essa ideia que faz com que Mário use locais e endereços conhecidos do povo, que utilize palavras e frases corridas que buscam representar o modo como as pessoas realmente falam, sem precisar forçar para parecer com europeu.
Outro ponto que achei curioso nessa narrativa é o terceiro personagem que citei acima: o Narrador. Este assume um papel essencial para o tom da estória. Ele reflete sobre os acontecidos, fala diretamente conosco, se reprime, muda de ideia… Ora funde-se a Elza, ora distancia-se das personagens. Sei que, até certo ponto da vida de Mário, ele criticava muito Machado de Assis. Acredito que ou ele já havia mudado de opinião quando construiu Amar, Verbo Intransitivo ou não se enxergava o suficiente ainda. Porque conforme fui lendo, apesar da forma ser bem diferente da forma realista, era como se eu estivesse lendo algo escrito por alguém que tem como influência maior o Bruxo do Cosme Velho. Esse conversar com o leitor, dar vida e opinião ao narrador, criticar a burguesia de forma sutil e sarcástica, aproxima muito a obra aqui descrita das obras realistas de Machado. Eu, particularmente, gosto muito desse recurso de narrador personagem.
Filme: Lição de Amor, 1975
Particularmente, achei o filme pequeno. As duas atuações que valem a admiração são para Dona Laura e Fraülein. Os outros atores são péssimos. Mas isso é apenas uma opinião pessoal. Trago o filme, mesmo sob essa visão negativa, porque ele pode ser interessante para assistir tanto antes como depois de ler o livro. Se o ver antes, trata-se de uma adaptação com enredo bem reduzido, então pode te despertar o interesse de ver a estória com mais profundidade. Se o assistir depois de ler, é interessante para dar certa forma às personagens e relações e para que não esqueçamos que, costume da época ou não, Elza era uma pedófila. Apesar do ator que faz Carlos não ser muito bom, seu jeito é bastante parecido com o do livro.
E, aqui, finalizo a resenha de um dos melhores livros do meu ano. Obra que entrou para minha lista pessoal de melhores livros da vida.
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