jota 03/04/2014Sujo, Sórdido, SurpreendenteDepois do esfacelamento da União Soviética e com o embargo americano logo em seguida Cuba se tornou um dos países mais decadentes da América Latina. E igualmente um dos mais pródigos do mundo em sacanagem, conforme o livro de Juan Pedro Gutiérrez. Aumentaram consideravelmente a putaria, as maracutaias, os jeitinhos e especialmente a sujeira, com muitos ratos e baratas e esgoto a céu aberto.
Os carros antigos, alguns até mesmo puxados por cavalos, e edifícios em ruínas (num dos quais vivia o autor) continuam por lá; os racionamentos de todo tipo e o controle do Estado sobre as pessoas também (lembram da blogueira Yoni Sánchez, que visitou o Brasil e foi hostilizada pelos petistas, impedida até de falar?). Alguns vizinhos do autor criavam galinhas e porcos nas coberturas dos edifícios pois carne era artigo raro e caro (e deve continuar sendo, não sei), praticamente apenas para servir estrangeiros e autoridades, sabe como é, não? E para o povo, mandioca...
Assim era a vida em Havana e em outras cidades do país nos anos 1990 - o livro foi publicado originalmente em 1998 mas não em Cuba e continua inédito por lá até onde sei. Não exatamente por proibição governamental, mas por conta do medo dos próprios editores do país em publicá-lo – sob a ditadura castrista quem tem editora tem medo, se me entendem.
A Cuba atual comparada com a do livro deve ter se modificado muito pouco (apenas superficialmente, na verdade; quando Fidel entregou o poder para o irmão Raul) e agora vai contar com um moderno porto financiado pelo generoso governo petista que flerta preferencialmente com governos ditatoriais ao redor do mundo. Há pouco tempo o poste que nos governa esteve em Havana beijando as mãos de Fidel, seu grande ídolo depois de nosso “ex-presidente em exercício”, seu criador.
A trilogia suja de Havana (e bota sujeira, suor, sêmen, urina e muita merda nisso), e talvez seja aconselhável ler esse livro usando luvas descartáveis, se divide em três partes: Ancorado Em Terra de Ninguém é bastante autobiográfica, Nada a Fazer trata quase que exclusivamente das neuroses de JPG e Sabor a Mí (nome de uma canção mexicana conhecida internacionalmente) revela por completo o ficcionista que já habitava Gutiérrez em outros tempos – ele era jornalista e depois foi banido da profissão. Em Cuba, como se sabe, jornalismo só pode ser a favor do governo. Também na Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador, etc., todos muy amigos de Fidel e dos petistas, então a coisa nessas republiquetas bolivaristas não está para peixe e muito menos para foca...
Bem, as três partes do livro apresentam histórias curtas, de poucas páginas, como se fossem capítulos breves. A maioria tem como personagem principal o próprio autor fazendo, aos quarenta e quatro, quarenta e cinco anos, um balanço de sua vida erótica e caótica. Caótica sim, mas não exatamente erótica; sexual de fato, depravada ao máximo. O tempo todo JPG chama as coisas por seus nomes chulos mesmo: pau é pau e pedra é pedra, se me entendem novamente.
São histórias mais ou menos independentes umas das outras, feito contos e que quase sempre envolvem sexo, trapaças, bebedeiras, consumo de drogas ilícitas, brigas de casais ou de vizinhos, prostituição, problemas variados dos habitantes (falta de grana, comida, moradia, saúde, trabalho, transporte, higiene), etc. Ou todas essas coisas juntas, em alguns casos.
O retrato que Gutiérrez faz do país, do povo cubano e de si mesmo é carregado nas tintas ficcionais e autobiográficas e resulta sórdido, sujo, deplorável. Em suma, extremamente negativo para todos; ele avacalha com tudo mesmo, porque a realidade em que vivem os habitantes da ilha é cruel, assombrosa. Daí talvez porque o livro continue inédito em Cuba. Se incomoda o leitor, imagine então aquelas múmias comunistas, no poder há mais de cinquenta anos...
Mas esse quadro dantesco foi pintado por alguém que, como informa a editora brasileira da obra, “nasceu e cresceu na utopia da Revolução Cubana.” E que, portanto, sabe muito bem do que fala e escreve, conhece a fundo o país e sua gente. Embora JPG aborde questões políticas apenas superficialmente - em entrevista à revista VEJA tempos depois do lançamento do livro no Brasil ele dizia que não apreciava ser manipulado nem por cubanos nem por americanos.
Em suas próprias palavras: “(...) não me interessa, ou não quero, ou não devo, fazer análise política. Minha obra não é jornalística, nem sociológica, nem antropológica.” Ele queria (quer) ser reconhecido por seu trabalho literário, claro. E não queria, como muita gente em Havana e no resto do país, se mudar para Miami ou outra parte dos EUA. Desde que tomem muito cuidado com a política, com o que falam ou fazem, as pessoas sempre acabam dando um jeitinho de sobreviver em Cuba, se acomodam sem grandes dramas, vão levando a vida assim - ou, como naquele samba de Zeca Pagodinho, vão deixando se levar pela vida.
Nem todo cubano tem vontade ou coragem de tentar entrar nos EUA navegando numa balsa precária, talvez ser devorado pelos tubarões muito antes de avistar Miami. Ao escrever sobre essas coisas – a sobrevivência em si - Gutiérrez fez de Trilogia Suja de Havana um livro admirável. Também o mais sujo em que eu tenha posto os olhos alguma vez, em que uma pessoa se expõe sem reservas, tão aberta e completamente como nunca antes na história da literatura daquele país (sic). Ou de qualquer outro país, talvez.
Mas fico me perguntando como é que um sujeito como Gutiérrez (tem a foto dele na orelha do livro e também na internet) que não é exatamente nenhum galã, muito longe disso, consiga (ou conseguisse) transar com tantas mulheres e com tanta frequência. Parece que cubanos e cubanas só pensam naquilo, até mesmo as pessoas idosas, que falam de seus desejos sexuais e de suas transas com tamanha naturalidade e atrevimento de, imagino, deixar corados os personagens mais atrevidos e sacanas de Jorge Amado. Seriam os ares do Caribe?
O que é certo também é que se muita gente se oferece (mulheres e homens), se prostitua em Havana especialmente, onde há mais turistas estrangeiros, é para ter o que comer, levar alguns dólares para casa, sobreviver, enfim. Mas a maioria das pessoas - ou personagens do livro -, independentemente de qualquer coisa, gosta mesmo é de uma boa sacanagem, quase sempre regada a álcool (rum, na maioria das vezes) e fumo (com muita maconha rolando o tempo todo, não apenas cigarros ou charutos); também há quem gosta de ser esbofeteado durante o ato sexual.
A sexualidade exacerbada, desbocada, atrevida, domina o livro do começo até o final. E Gutiérrez vai bem longe nisso: também inclui na narrativa casos extremos, envolvendo estupros, viadagem, necrofilia e pedofilia; são relatos em que a barra pesa, de fato. É este então um livro mais do que sujo, pornográfico mesmo? Para algumas pessoas, sim. Embora pareça, pareça muito, não se pode dizer que Gutiérrez tenha escrito um livro pornográfico – Trilogia Suja é assim uma espécie de A vida como ela é em Cuba. Ou como foi até pouco tempo atrás. Ou continua sendo, não sei.
Acho difícil que Trilogia Suja de Havana deixe alguém sexualmente excitado. Penso que seja muito mais fácil que fique brochado, até mesmo enojado grande parte do tempo. Se JPG quis nos impressionar ou chocar, se nada do que conta é verdadeiro, então ele é um ótimo ficcionista. Mas se tudo o que diz é verdade então ele é um ótimo antropólogo social. No final da leitura acaba-se concluindo que ele é ótimo tanto numa coisa quanto noutra. Uma certeza que já vinha se cristalizando desde as primeiras páginas deste livro surpreendente.
Lido entre 24/03 e 03/04/2014.