Giovanna_R 28/07/2017
No ar e no chão
Decidi começar a escrever este texto ouvindo a Nona Sinfonia de Gustav Mahler em uma noite como muitas outras. E é em uma noite dessas que começa Open City (Cidade Aberta, lançado no Brasil pela Companhia das Letras), o livro de estreia do escritor nigeriano radicado nos Estados Unidos Teju Cole.
A história se passa na Nova York pós-11 de setembro e na mente de um jovem médico nigeriano que faz residência em psiquiatria. Vivendo já há muitos anos na Big Apple, repentinamente Julius, o protagonista, adquire o hábito de caminhar sem rumo pela cidade. Por horas muitas, bairros diversos, motivos inexistentes. E ele vai nos contando os dias solitários e sua infância na Nigéria.
Gostei de Julius logo no início: temos o mesmo hábito de ouvir rádios estrangeiras na web e ficar imaginando como está o tempo naquele país, o que as pessoas estão fazendo no momento, quem está ouvindo conosco. Acho que é um costume de quem gosta de passar algum tempo sozinho. Por opção ou força das circunstâncias.
Mas Julius é o narrador. Ah, leitor inocente que se deixa levar pelas palavras... Porque ele é muito honesto com seus pensamentos (ou você acha que é). Tão honesto, talvez, que muitas vezes achei estar conversando com Cole (aliás, um cara muito gente boa, como percebi ao falar rapidamente com ele na Flip, com a desculpa de pegar um autógrafo). Há momentos em que essas duas vozes se fundem claramente, como quando Julius visita museus de Nova York em seus dias vazios (Cole estuda arte antiga dos Países Baixos).
Aliás, o vazio é só externo. Julius tem uma vida mental muito agitada, o tempo todo está refletindo sobre alguma coisa — desde o ataque de bed bugs (um tipo de percevejo que frequentemente atormenta os nova-iorquinos) até a questão árabe no pós-11/09. Só ouvimos sua voz dirigida a outras personagens quando fala casualmente com um taxista, nas raras vezes que encontra seus amigos, ou seu ex-professor de literatura inglesa, o Professor Saito.
Um dos pontos mais interessantes do livro é quando Julius viaja para a Bélgica para tentar encontrar a sua avó, com quem perdera o contato há alguns anos. Lá ele conhece Farouq, um muçulmano que trabalha em uma espécie de lan house em Bruxelas. Os dois encontram o melhor amigo de Farouq em um restaurante e passam horas conversando, mas especialmente sobre a relação dos muçulmanos com o mundo ocidental nesse novo ponto da história, em que foi criado um estereótipo de que todo árabe é muçulmano, e todo muçulmano é terrorista.
Open City também acaba sendo um roteiro de viagem para Nova York e um livro de história. Com o hábito de caminhar longamente e sem rumo, Julius acaba nos apresentando uma cidade um pouco diferente — na verdade, bem mais apaixonante. Você lê a última linha e tem vontade de comprar uma passagem para lá.
E você lê a última linha e fica desconfortável. Não, não é aquela depressão pós-livro que a gente tanto conhece quando termina uma obra incrível. Bom, também. Mas o desconforto é por perceber que Julius enganou você por 259 páginas, e com algo muito grave. E por mais que você o ache um cara interessante e legal, a revelação que ele faz nas últimas 15 páginas (e a postura leviana que adota para contar) deixa esse azedo na boca. As pessoas mudam, acreditam alguns (me incluo nessa), mas não dá para ignorar. Ele contou isso como se não fosse nada, para fazer você acreditar que não foi nada mesmo? Ou ele não acredita que tenha feito mal? Se for este o caso, então temos um problema.
Mas aqui estou, terminando o texto sem chegar ao fim da longa Nona Sinfonia de Mahler, uma das preferidas de Julius e que serve de prelúdio para a revelação, que o protagonista faz logo em seguida no livro. Na verdade, essa sinfonia podia muito bem ser a trilha de Open City.
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