Arsenio Meira 21/02/2015
Joseph Walser: Meursault em tempos recentes, condenado por...
Consideremos que se trata de um livro curto, que não alcança 200 páginas, mas sem dúvida os discursos filosóficos e as reflexões, tanto do narrador quanto de Klober Muller, seu superior verborrágico e fanfarrão, apresentam desenvolvimento e profundidade maiores que as das próprias personagens. A riqueza do livro aponta-se do lado de fora dos indivíduos. Dentro das ideias, mas fora dos seres humanos. O ápice deste fato revela-se na ideia principal formulado por Klober Muller, e que, implausível de nascença, não pode ser alcançada/atingida por homem algum.
Portanto, se a complexidade da vida está presente com todos os seus elementos, sua essência encontra-se fora do animus do "elenco" diminuto mas marcante dos personagens deste inusitado romance. Tais seres encontram suas vidas(cada uma em sua particularidade) de maneiras estranhamente entravadas. Não há desenvolvimento possível, exceto pela morte ou isolamento (que é outro tipo de morte). Vidas retalhadas assim como os capítulos dos livros, e enfileiradas assim como os capítulos que não têm nome.
O próprio significado das vidas de Walser, sua esposa Margha, Klober, seu companheiro de ofício e jogos de dados Fluzst M, e Claire, ou até mesmo a busca por um significado da parte deles apresenta mais uma faceta deste mundo desiludido que passou a vigorar com mais contumácia com o surgimento de Samuel Beckett. Até as duas mulheres com quem Walser se envolve parecem apaticamente perdidas não na trama, mas em si mesmas, dentro do mundo que as cerca.
Os homens, Fluzst M. e Klober Muller assumem posturas antagônicas. O primeiro, mesmo apesar da tentativa, não consegue superar a realidade que lhe oprime. O segundo, como frisei, compreende friamente o jogo de interesses que desenvolve as relações humanas e parece completamente adaptado ao status quo, ainda que de forma histriônica. Mas se todos os indivíduos se comportassem como Klober Muller, ou até seguissem o que ele discursa, o cenário se tornaria ainda mais sombrio e devastador.
Como Walser é o protagonista, recebe o maior quinhão do que é narrado; ele é o Meursault mais novo: nada mais natural que se afigure mais nítido nele o efeito destas relações e revelações da trama tecida pelas mãos ariscas do Gonçalo M. Tavares. Um indivíduo que se relaciona com as máquinas de maneira infinitamente mais íntima que com seres humanos, que encontra nelas lugares seguros de afeto, mas que talvez, no fundo, esteja simplesmente a relacionar-se consigo mesmo, uma vez que são objetos inanimados, lembra - o menos - o olhar inicialmente opaco e alheio de Meursault.
A iniquidade do mundo se impõe a Walser com maior veemência quando ocorre sua tragédia, meio que anunciada no início do livro ou um pouco mais adiante. Este dado, inclusive, é o primeiro divisor de águas do livro, que é dividido em três partes. Um certo fato determina a existência de Walser. Tal qual ocorrera com Meursault. A partir de tais momentos, ambos fiéis ao desenrolar da trama, os personagens já pareciam talhados para transpor tais obstáculos tormentosos. Parecer não dá certeza de um centavo a seu ninguém, como dizia o outro... Num espaço que se apresenta ditatotral, injusto, sacana, nada diferente de tantos lugares que sempre despontam por aí, onde as possibilidades de avanço que se apresentam são voltados para o avanço da violência e de um belicismo ainda maiores, não há muito espaço para "o amor, o sorriso e a flor." Zero de futebol. Carnaval, nem notícia de boatos. É sufocante, na mais caridosa das hipóteses.
Mas no meio do caminho, mais um problema: este estado de coisas foi criado pelo próprio homem; e Gonçalo parece-me defender a tese de que o homem agora já não possui mais controle, nem consegue elaborar uma solução para os problemas que se apresentam. É o se correr o bicho pega... Isso no Brasil já virou ditado popular desde que D. João chegou com suas coxinhas de frango nas algibeiras... Mesmo com a Carlota vendendo caro os desconfortos...
A gravidade dos problemas aumenta proporcionalmente às suas complexidades. E estes não podem ser analisados completamente a olho nu, pois têm raízes muito profundas. De que nos serviria aprofundar na arte, tanto criando quanto a criticando, sem a visão de um retorno ao local de onde se partira inicialmente? Ao indivíduo simples, mas consciente, a desilusão se reflete em uma mente que percebe que não lhe restam muitas expectativas. Em Walser isso se apresenta na simples coleção e em sua relação com a máquina.
Desta vez, por fim, com o indivíduo modificado pelo processo no qual passou ao longo do caminho.Joseph Walser não deixa de ser, com seus sapatos "absolutamente irresponsáveis", sua própria guerra: silenciosa, sem máquinas, ou bombas, granadas; apenas o vazio fatal de um corte em seu corpo. Vazio porque o sangue derramado, às vezes, traz alguma redenção. No mais, de nada adianta. A não ser o esquecimento.