João Ks 21/06/2022
Nove ensaios dantescos & a Memória de Shakespeare – Jorge Luis Borges.
O inventário crítico acerca da Comédia só faz crescer e crescer; é como se o fermento universal que impulsiona a grandeza do poema de Dante fosse uma dessas chamas inextinguíveis encontradas no Inferno, ou, melhor dizendo, um desses pontos luminosos inapreensíveis que habita o Paraíso.
E é precisamente por ser inextinguível e inapreensível, que esse motor que anima a dimensão estética e filosófica da obra sempre nos encoraja a novas pesquisas, a novas leituras e a novas abordagens sobre o poema.
É claro que às vezes muito se escreve e nada se diz; ou, ainda, pode-se verificar que muita coisa escrita a respeito da Comédia não passa de mera repetição daquilo que velhos comentadores já revelaram, ou, quando menos, pode-se tratar de pura reciclagem da fortuna crítica existente.
Certamente não é o que se dá com os “nove ensaios dantescos” da lavra do escritor argentino Jorge Luis Borges.
São ensaios surpreendentemente curtos, mas grandes o suficiente nas revelações que oferecem e nas propostas interpretativas que apresentam.
O olhar acurado de Borges, familiarizado desde há muito com o poema, não deixa pedra sobre pedra ao descortinar as camadas que compõem as cenas e os personagens do poema.
Os nove ensaios transitam por episódios do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, mas sobretudos daquele primeiro, certamente em razão do maior impacto imagético e afetivo que o Inferno tem sobre o leitor da Comédia.
No ensaio “O nobre castelo do Canto IV”, Borges aponta para a impressão terrível deixada pelo “Nobre Castelo”, isto é, pelo local iluminado onde jazem as almas dos virtuosos da Antiguidade. Isso porque o lugar conteria uma contradição angustiante: embora visualmente se confunda com os próprios Campos Elíseos - em beleza e sossego - o Limbo dos pagãos virtuosos carrega o traço da desesperança, da monotonia e do vazio; Segundo Borges, “Dante não podia, indo contra a fé, salvar seus heróis; pensou-os num Inferno negativo, [...] e se apiedou do seu misterioso destino”.
No “O falso problema de Ugolino” Borges afirma que, de certo modo, é inócuo o debate obstinado da crítica literária em torno da questão de saber se Ugolino della Gherardesca - quando trancafiado com seus filhos e netos na prisão da torre - se alimentou destes depois de mortos. Para o ensaísta, o horror da cena está mais na simples cogitação, na simples suspeita, na mera suposição, e menos na afirmação categórica de que o fato aconteceu; e essa teria sido a intenção do poeta: semear a “ondulante imprecisão” acerca do tema.
Em “A última viagem de Ulisses”, a argúcia do ensaísta alcança seu ponto alto. O paralelo proposto pelo autor entre a viagem de Ulisses e o empreendimento literário de Dante, e, de resto, entre a viagem de Ulisses e a sanha ontológica de Ahab em direção à inescrutável baleia branca, em Moby Dick, é formidável.
Em “O carrasco piedoso”, Borges destrincha o embate interno que deve ter fustigado Dante ao desenhar a imagem de Francesca da Rimini no segundo círculo do Inferno; por um lado, a personagem emblemática de Francesca inspira piedade, tristeza, compaixão e máxima empatia; por outro lado, dada a proposta moral e pedagógica do poema (“retirar os homens do estado de pecado e conduzi-los ao estado de felicidade”), o seu pecado (adultério) sem arrependimento impõe a mais estrita punição.
No ensaio “Dante e os visionários anglo-saxões” há uma sugestiva aproximação entre o poema de Dante e algumas fábulas da antiga Inglaterra; não seria espantoso supor que tais histórias tivessem, de fato, influenciado Dante, dada a semelhança entre os acontecimentos relatados; todavia, para Borges, mais importante que isso, é ter presente a dimensão de que as semelhanças nascem, antes, do espírito da época, e menos da influência direta que umas obras têm sobre outras. Para Borges: “Um grande livro como a Divina Comédia não é o capricho isolado ou casual de um indivíduo; muitos homens e muitas gerações convergiram para ele”.
Em “Purgatório, I, 13” o autor propõe alguns exemplos de versos que jogam de maneira espantosa com as palavras, remetendo a um continuum imagético.
Em “O último sorriso de Beatriz” fica patente o descontentamento do Borges-leitor, do Borges-humano, com a união fugaz e escorregadia entre Dante e Beatriz no Paraíso. Diz o ensaísta: “Daí as circunstâncias atrozes, tanto mais infernais, obviamente, por transcorrerem no empíreo: o desaparecimento de Beatriz, o ancião que ocupa seu lugar, a brusca elevação de Beatriz à Rosa, a fugacidade do sorriso e do olhar, o desvio eterno do rosto”.
O livro ainda conta com outros dois ensaios: “O simurgh e a águia” e “O encontro num sonho”, completando assim nove ensaios.
De resto, a coletânea de texto nos presenteia com quatro contos de Borges, esse escritor fantástico, esse escritor dos sonhos.