Isaac Reis 26/08/2012
***DEPOIS DE LER "DER ZAUBERBERG"*** (http://ireis-ir.blogspot.de/2010/07/depois-de-ler-der-zauberberg.html)
Não é novidade dizer, dos livros, que são bons amigos, e isso no sentido mais preciso do termo: como os bons amigos, eles nos desafiam, nos mostram quem somos, como levamos a vida, criticam-nos, volta e meia, por maneiras ou hábitos incoerentes, constroem o nosso caráter, com o passar dos anos.
Muita vez nos oprimem: so many books, so little time. E parecem fazer toda questão de, do alto das prateleiras, denunciar a nossa pequenez e insignificância. Não é costume dizer, mas os livros têm lá sua vaidade.
Alguns, superficiais, contentam-se em flertar com qualquer potencial leitor. São os livros da moda. Exibem, pavoneando-se, as cores das capas. Um brilho aqui, letras reluzentes ali, lombadas douradas acolá. Pedem, como as mulheres apenas belas, uma olhadela, um toque de mãos... Pedem, como costumo fazer com eles, que se lhes abram a tez, e que se os cheire, enfiando-se o nariz curioso entre a intimidade de suas páginas.
Também os livros têm lá as suas frugalidades. Há que se satisfazê-los, virilmente, sob pena de nos deixarem para trás, solitários e carentes.
Há alguns outros que propõem diálogos andantes. Lembro-me bem de um poeta que conheci, o qual, pela manhã, andava licencioso pela beira-mar, charlando em alta voz com um volume qualquer que tomava por companheiro. Contavam os segredos mais recônditos de cada um, trocavam galanteios espirituosos entre si, faziam projetos de caminhar juntos cada dia mais longe, rentes à vastidão glauca. Os do dia chamavam-no de louco, evitavam-no. Dos livros, porém, jamais ouvira um NÃO. Alguns têm esse costume, o de caminhar conosco.
Há aqueles, pragmáticos, que nos ensinam coisas, oferecem facilidades. “Fale alemão em 30 dias!”, charlataneia um deles no alto da estante. “Gastronomia básica para iniciantes!”, “Aprenda a meditar em 10 lições”, “101 posições para enlouquecer a sua mulher na cama” – esse mercado persa, essa feira de caruaru não conhece limites. Promete de tudo. Curiosamente, dão-nos a segurança que os oráculos proporcionavam aos antigos: sabem todas as respostas, em contraste com a nossa ignorância de neófitos na vida. “Como falar de livros que você nunca leu!” Acreditem! Existe! Sem comentários...
Mas há livros, e quero aqui falar deles – na verdade, de um, em especial – que exigem mais de nós, os seus súditos. Exigem respeito. Pelo peso que sua personalidade esconde. Pela profundidade que os seus tipos encerram. Exigem tempo, como suas centenas (milhares, por vezes!) de lâminas numeradas. Exigem aquele desapego de espírito, não apenas do “quando”, mas também do “onde” e do “que” nós somos. Esses senhores (e senhoras) fáusticos prometem-nos mundos inteiros, pensamentos, visões escandalosamente belas. São esses, que como os melhores amigos, levam nossos olhos para passear. São esses que colocam palavras em nossa boca, que nos inculcam hábitos, opiniões. São esses que nos fazem sentir um vazio de saudade quando nos aproximamos de suas páginas derradeiras. São esses para os quais, uma vez de volta às estantes, dirigiremos sorrisos cúmplices de canto de boca, por sabermos tanto um do outro. São esses que fazem a vida valer a pena.
Cá estou eu, no silêncio da minha mesa de trabalho, em frente ao volume que me acompanhou e atormentou por tantos anos. Que me viu partir tantas vezes e que, entre as lágrimas das despedidas, sussurou-me sempre, camarada: “Vamos! Eu vou contigo.” Que protegeu, entre suas páginas-sacrário, amuletos, pétalas, folhas, pelos, souvenires, pedaços de mundo que foram se desprendendo e se juntando a mim, por onde passamos.
A você, que me lê, tenho que confessar: escrevi essas linhas apenas para adiar o momento do finis operis, eis que me aproximo daquele instante em que o montinho da esquerda já é infinitamente maior que o da direita e que só a muito custo é possível mantê-lo aberto sem violar as costuras do cirurgião-editor. Sim, caro leitor, aproximo-me das páginas finais desse livro que me acompanhou durante tantos anos e ao qual atribuí tanto significado como o que têm as coisas que se ama. E que – prometo – contarei nas próximas linhas.
Em breve, depois de 10 anos, eis o número redondo, nos separaremos. Eu, para a vida e suas corrupções diuturnas; ele, de volta à castidade das prateleiras. Por ora, peço que me perdoe, leitor, pela interrupção. Como quem atrasa a partida do navio para voltar ao cais e beijar pela última vez o ser amado, peço licença para voltar e ler as últimas páginas do objeto dos meus afetos.
* * *
Estou de volta.
Acabo de fechar “A Montanha Mágica” (Der Zauberberg, 1924)
Comecei a lê-lo em circunstâncias parecidas com as do personagem principal, Hans Castorp, que abandona a planície, em Hamburgo, para uma visita de três semanas ao primo tuberculoso, em um sanatório de Davos, Suíça.
Também eu, aos 23 anos, viajei da planície à montanha. Não fora visitar quem quer que fosse. Tinha ido em busca de mim mesmo. No retorno, constatei, como Mann, “que dois dias de viagem apartam um homem – e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida – do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses e projetos.”
Desde aquela viagem, há 10 anos atrás, como Hans Castorp, preferi ter galhos altos a raízes profundas, a crescer para cima, para o céu, mesmo que o céu não exista. Tanto se passou, desde aqueles longínquos anos na montanha...
Desde então, assisti à amizade germânica e distante entre Castorp e seu primo Joaquim Ziemssen; perscrutei, de forma tão tola e ingênua quanto ele, os personagens do Sanatório Internacional Berghof – e que também são os personagens da vida.
Acompanhei, cúmplice, o amor platônico por Mme. Clawdia Chauchat, em suas idas e vindas, não sem evocar à memória os meus pequenos amores de infância, quando era sempre noite de carnaval. Também exasperei-me com a frivolidade, a rudeza e displicência que nosso herói injustamente atribuía à natureza asiática daquela fêmea. Como os habitantes da colina glacial, e embora sem nunca ter visto certos olhos de quirguiz, apaixonei-me pela beleza russa de Mme. Chauchat. Soltei fogos mudos de artifício quando o nosso mancebo, mais de 500 páginas depois, conseguiu beijar-lhe os lábios.
Senti o mesmo asco pela vulgaridade de Carolina Stöhr. Quanta coisa aprendi, ao longo desses 10 anos com o humanista Ludovico Settembrini! Como me fiz discípulo de sua simplicidade pedagógica! Como assisti, absorto, às suas preleções sobre o desvalor moral do culto à doença e sobre o único modo válido de se pensar a morte: como parte da vida. Por quantas vezes, fiz-me platéia nos inumeráveis diálogos com Leo Naphta, nos quais o italiano apelava para a razão como última cidadela dos valores humanos, enquanto o obscuro jesuíta fazia pouco caso do único mundo que temos, da única vida que nos foi dada.
Aprendi a respeitar o professor Settembrini quando, corajoso o suficiente para não fugir ao duelo com Naphta, mostrou-se coerente ao ponto de recusar-se a atirar naquele que, embora adversário do espírito, era irmão em todo o resto.
“Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal, não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens.” – ecoa ainda em minha mente. Mas na hora fatal, é como se também tivesse me chamado num canto e sussurado: “Meu amigo, eu não matarei. Não farei isso. Vou me expor à bala dele. Mas eu não matarei, fique sossegado.”
Settembrini, o italiano humanista do progresso que, no momento derradeiro, rompeu a frieza tedesca e beijou as faces do seu filho enfermiço da vida. E que, tendo-se recusado a matar por um ideal, teve de ver a carne do filho imolada na guerra, a nossa grande vergonha.
Lembro-me de Mynheer Pepperkorn, companhia temporã, que só chegou-me quando, pela última vez, cansei-me de interromper a leitura e de recomeçá-la do início solene. Bebemos juntos no alto da noite gelada.
Vou parar aqui. Não quero, caro leitor, caso não conheça a obra que ora menciono, demovê-lo do interesse em tomá-la, sob a alegação de conhecer-lhe o roteiro. Asseguro-lhe: é infinitamente mais rica do que a palidez das minhas palavras pode encetar. Tome-a! É possível que consiga finalizá-la em poucas semanas, se for prático, culto ou desocupado o bastante. De mim, exigiu 10 anos! Que, no entanto, jamais poderiam ser contados pelo número de revoluções que o nosso planeta dá em torno do sol.
Ensinou-me tanto sobre Filosofia, Música, Religião, Política, Pedagogia, em vários idiomas, e no meu próprio, que, descobri, pouco conheço. Com quantos dramas humanos confrontou-me, naquele sanatório de dementes, para onde convergia gente de todos os cantos do mundo, em busca da cura, que jamais viria! Era o mundo doente, entre o tédio e a grande irritação, que desembocaria na I Grande Guerra.
E agora, tudo acabou, quando fechei a última página. Sinto o mesmo que Hans Castorp quando, depois de 7 anos, deixa a montanha em ruínas e parte, para sacrificar-se na guerra. Não pude conter-me, ao me despedir da estória do nosso amigo, para com o qual nutri uma indissimulável simpatia pedagógica, e que me fez repetir o gesto do italiano na estação de Davos-Platz, ao “tocar delicadamente o canto do olho com a ponta do dedo”.
É assim, leitor, que de modo meio triste, meio alegre, termina o meu aprendizado no alto da montanha. Falar dela, e do que lá teria acontecido – ainda que apenas no imaginário do autor que nos inspira há quase 100 anos – é, inexoravelmente, falar também de mim próprio.
Caro leitor, se alguma serventia tiverem as palavras, que você aceite o convite. Coloque entre os seus pertences mais íntimos estas quase 1.000 páginas do mais acabado exercício espiritual humano.
Durante esse lapso, preserve-se do excessivo realismo das planícies, onde ação e pensamento caminham sempre separados, em detrimento do último. Aqui em cima, o ar é rarefeito e é preciso ter pulmões fortes. Aqui em cima, a distância menor entre dois pontos é mesmo de cume em cume. Aqui, nenhuma lassidão. Somente a agudez dos espíritos cortantes.
Aqui você ouvirá, caro leitor, entre uma conversa e outra, a palavra a acariciar o amor, a guerra, a vida e a morte, essas coisas nossas, demasiado nossas.
Somente da montanha, com o vento aquilino a afagar-lhe o rosto, você também poderá assistir, leitor (ou mesmo reger, como fazia Hans Castorp) o magnífico espetáculo por nós orquestrado ao longo da História.