Pandora 11/03/2023Joia! Uma pequena joia.
A história se passa no final do século XIX e é narrada por um advogado perto dos 60 anos que tem um escritório em Wall Street (Rua do Muro), até hoje o famoso centro financeiro da cidade de Nova York.
Descrito por si mesmo como um homem pouco ambicioso, que acredita que a forma de vida mais fácil é a melhor, não participa de julgamentos ou media conflitos; a natureza de seu trabalho é tranquila e envolve muita documentação (ações, hipotecas e propriedades de homens ricos), por isso ele emprega escrivães/copistas.
Estes escrivães são Turkey (Peru) e Nippers (Alicate) e há também um jovem contínuo, Ginger Nut (Pão de Mel). Cada um dos copistas tem uma particularidade dificultosa que faz com que Turkey trabalhe melhor de manhã e Nippers à tarde e o advogado parece entender e aceitar muito bem esse arranjo, mas ao longo da leitura vemos que este narrador não muito confiável - afinal só temos sua versão da história - parece sempre muito razoável e cordato, paciente, amistoso e boa gente. Aqui e ali pescamos sua linha de pensamento, que obviamente retrata a visão de um patrão. Com Bartleby, apesar de todo o absurdo da situação e do que o advogado faz para minimizar o problema, não é muito diferente.
Bartleby é contratado porque o advogado assume o cargo de Oficial do Registro Público e o trabalho aumenta consideravelmente. A princípio, apesar do ar taciturno do novo funcionário, o patrão fica feliz na esperança de que aquele rapaz tão sossegado possa equilibrar o ambiente um tanto tenso por causa das indisposições dos outros empregados. Ele instala Bartleby perto de sua mesa - para que possa chamá-lo a qualquer momento -, porém atrás de um biombo e ao lado de uma janelinha que dá para um muro. “A luz vinha de cima passando por dois prédios altos, como se fosse uma pequena abertura numa c u p u l a” - pág. 8.
À princípio, Bartleby parece o funcionário-padrão: trabalha noite e dia, à luz natural e à luz de velas, não para pra almoçar (vive à pão-de-mel), não fala, não reclama, exerce sua função mecanicamente. Até o dia em que o advogado lhe pede que confira com ele algumas cópias feitas recentemente, ao que ele docilmente responde: acho melhor não. E a partir daí, esta parece ser a frase que ele tem para todas as solicitações do chefe, nas mais variadas situações.
Já faz alguns dias que terminei a leitura, mas não sabia como escrever sobre ela. Ainda não sei bem. É uma história tão pequena, mas tem tantos desdobramentos… você acha que é sobre o Bartleby, mas é sobre o Bartleby e o advogado, sobre relação patrão-empregado, sobre classes, sobre adoecimento, sobre hipocrisia e sociedade, sobre resistência e liberdade.
Livia Piccolo, num vídeo sobre a edição da Antofágica, nos lembra que o livro é um clássico aberto a várias interpretações e cita duas:
Uma crítica ao capitalismo, por mostrar esses trabalhos desumanizantes, que não acrescentam nada à vida.
Questão de saúde mental. Bartleby teria depressão? E aquele trabalho maçante estaria agravando essa condição? Já eu me pergunto se não é o fato de ser diferente, de não se encaixar, de tentarem mudar quem ele é, que o adoece.
Em “Reflexões sobre o animal laborans e o homo faber em Hannah Arendt: uma abordagem jurídica”, Elizabeth Alice Barbosa de Araujo e Eulália Emília Pinho Camurça escrevem o seguinte: O homem necessita constantemente lutar pela sobrevivência e pelo consumo, e como só visa produzir o consumível, não possui nem o tempo e nem a liberdade suficientes para desenvolver sua personalidade na esfera pública, tornando-se uma grande engrenagem no sistema e podendo ser facilmente descartado. Também é este mesmo homem o mais susceptível a compor a chamada “massa” que pode servir de base para regimes totalitários. Este homem é chamado de animal laborans e é clara a sua vitória frente ao homo faber e ao cidadão”.
Há uns anos vi um filme europeu que, infelizmente, não me recordo o nome. Era sobre um rapaz que vai estudar na Espanha, não me lembro se ele era inglês ou francês, e quando ele volta tem um cargo público lhe esperando. No primeiro dia uns colegas o recebem com alegria e mostram as instalações, a sala, os arquivos, contam o que fazem e falam efusivamente sobre a melhor hora do dia, que é a hora do café. E o levam pra lá. O cara foge! (eu ri muito) e eu entendi tanto aquela fuga, o tanto de vida que ele tinha vivido até então naquela viagem, as experiências, os estudos, as dificuldades também, mas era vida!, não café de persianas fechadas.
Bartleby, o escrivão, pode sim, ter várias interpretações. É um conto fantástico, para ser lido e relido. É triste, mas tem seus momentos engraçados. Acho que só se passa incólume por Bartleby se não se prestar atenção a nada. Para mim vem ao encontro de tantas coisas sobre as quais reflito há anos e sei que continuarei refletindo.