maria.e.sousa.7 01/04/2024
Magistral
??Magistral??
Por muito tempo quis ler este livro, muitos anos mesmo. E, finalmente, cá estamos! Um romance de formação, que conta sobre a estruturação da personalidade e caráter de uma criança, seu amadurecimento a partir da observação do mundo e seu julgamento sobre aquilo que vê acontecer ao seu redor, os posicionamentos do pai e da família, e como isso influencia essa personalidade em formação.
A estória se passa na fictícia cidade de Maycomb, no Alabama, nos anos 1930, em meio à Grande Depressão ? período econômico sombrio que se seguiu à quebra da bolsa de Nova York em 1929. Em meados dos anos 1930 os EUA ainda vivem sob as leis de segregação racial, chamadas Leis de Jim Crow, promulgadas no fim do século XIX, que tinham como lema ?separados, mas iguais?, e que exigiam instalações públicas separadas para brancos e negros: na educação, saúde, espaços públicos em geral. A segregação não oficial também é social, pois os pobres também estão segregados às regiões menos ?nobres? das cidades.
É nesse contexto que cresce Jean Louise ? Scout ? uma menina de seis anos, inteligente, arguta, atenta, fora dos padrões e normas aceitas para meninas da sua época e é a partir dos olhos de Scout e da observação do mundo à sua volta, a partir dos seus olhos de criança, que a estória é contada e talvez por isso mesmo os temas densos e críticos que a estória traz pareçam ser tratados de forma leve. Diz-se que o romance é largamente baseado nas experiências da própria autora e em um caso similar que teria ocorrido na sua cidade natal, Monroeville, quando ela era criança.
Scout tem uma história de vida já diferente, criada junto com seu irmão apenas pelo pai, tendo a mãe morrido anos antes ? se hoje é incomum um homem criar filhos sozinho, imagine no início do século XX! Esse pai tem o suporte da governanta negra, ainda assim, ele não deixa a educação e formação dos filhos completamente ao encargo desta, como seria ?esperado?. Este também é um homem e um pai incomum, à frente do seu tempo ? não é, pois, incompreensível que seus filhos tenham uma visão mais alargada do mundo; um pai que também não se encaixa muito nos moldes da ?tradicional família americana?, não apenas porque cria filhos sozinho, mas porque tem uma visão muito própria de como educá-los, de como moldar seu caráter, sem se preocupar tanto com as convenções e com ?o que os outros vão dizer?. Atticus não se importa, por exemplo, que os filhos o chamem pelo nome, ao invés de chamá-lo de ?pai?, para desconforto da irmã.
Scout narra a vida acontecendo na cidadezinha, a partir do dia a dia da sua família incomum, da sua rotina na escola, na vizinhança ? com seus tipos comuns e estereotipados ou excêntricos e improváveis ?, a partir de fatos esparsos do trabalho do pai... E vamos vendo aos poucos a segregação e o preconceito tomando forma, seja escancarado ou dissimulado, disfarçado de cuidados com as normas e ?bons costumes?. Maycomb é a típica cidade interiorana dos EUA, em que a segregação é explícita e aceita como norma: divisão até geográfica entre negros e brancos e entre pobres e ricos; além do preconceito contra negros e pobres, há também preconceito contra mulheres, deficientes, desajustados sociais e minorias em geral.
Atticus é advogado por vocação ? numa família de homens tradicionalmente ?da terra? ? e se posiciona contra as soluções ?fáceis? oferecidas por aqueles que têm caráter frouxo ou simplesmente preguiça de pensar; mesmo quando as decisões vão lhe criar problemas pessoais, ele não opta pela saída fácil: integridade na sua melhor expressão. Ele é escolhido para defender um homem negro e deficiente físico, que é acusado de estuprar uma mulher branca, contra todas as evidências. Ele poderia recusar, mas sente que este é ?o? grande caso a sua vida, e prepara sua família para o choque e desprezo que irão enfrentar na sociedade local.
Em diversos eventos que povoam o crescimento de uma criança, dos mais prosaicos aos mais significativos, vemos Scout observar, absorver, maravilhar-se, surpreender-se, entediar-se, questionar, julgar e tomar tento de como o mundo funciona; aprendendo as lições, com o pai e outros adultos que respeita, a lhe explicar, cuidar, acolher, conduzir.
A primeira parte do livro prepara o cenário e cria o contexto; na segunda parte vem o grande acontecimento que ilustra a luta imemorial humana por justiça e pela verdade, mesmo quando as chances de vê-las triunfar são mínimas ou praticamente inexistentes.
Não à toa se tornou um clássico instantâneo, pois o romance trata de questões nevrálgicas da história americana e humana: integridade, justiça, dignidade humana, direitos civis, verdade, inocência ? e a perda desta ?, desigualdade social e racial, hipocrisia, violência, famílias abusivas, estupro, incesto. Alguns desses valores acimas são promulgados como espinha dorsal da sociedade americana, a ?Terra da Liberdade e das Oportunidades?, sendo, contudo, conspurcados pela hipocrisia e unilateralidade daquele país, onde a segregação segue existindo de forma não-oficial, mesmo no século XXI.
A tradução do título para o português privilegiou o tema central do livro, talvez pela dificuldade de traduzir o título original, a começar pelo fato de o pássaro mockingbird existir majoritariamente na América do Norte, aparecendo em poucos países da América do Sul. A tradução de ?mockingbird? seria algo como ?pássaro imitador? (to mock = imitar), ou mimidae, pois é um pássaro que imita o canto de outras aves. Também traduzido como ?pássaro-das-cem-línguas?, é às vezes associado ao sabiá, ao tordo, ao rouxinol e, embora possa ter parentesco com essas espécies, realmente não existe por aqui. Em muitas análises e resenhas, o título do livro se traduz como ?matar a esperança?, um ato de crueldade desnecessária ao se matar uma ave que nada faz além de agregar beleza ao mundo com seu canto. Eu traduziria como ?Para matar um mimidae?, mas a ideia central é a ?perda da inocência? da própria protagonista no seu processo de amadurecimento precoce, ao ser exposta a todos aqueles acontecimentos em primeira mão, por ser filha de quem era, e por escolher assistir ao desfecho de tudo em primeira mão, ao invés de ser poupada, conforme queria seu pai.
Há ainda, o desfecho inusitado, em que as crianças são salvas pelo mais improvável dos ?heróis?: um homem velho, adoentado, recluso, ele mesmo vítima de preconceitos e envolto numa mística criada pela imaginação fértil das crianças. Eu me perguntava porque a autora teria passado tanto tempo se ocupando daquele personagem, importante, aparentemente, apenas na percepção das crianças na primeira parte do livro, mas eis que ele se torna crucial no último capítulo e desfecho da narrativa.
É um romance simples, onde o local fala do universal e, por isso mesmo, é magistral, uma verdadeira obra-prima, merecedor dos prémios e lugar que conquistou na literatura.
Fiquei particularmente feliz por ler este livro neste momento, tendo indicado na SLV, e sou muito grata a todos da SLV por terem votado como livro do mês de março/2024. Assim, além de me deleitar com essa obra magistral, ainda pude me deleitar duplamente com as análises, percepções e visões de todas as pessoas que o leram junto. Foi realmente maravilhoso! Muito obrigada!
Recomendadíssimo!
5/5 ou 10/10