Saitan 15/10/2020
Chocante
[AVISO DE GATILHO: PEDOFILIA, ABUSO SEXUAL/PSICOLÓGICO, HOMOFOBIA, SUÍCIDIO, AUTOMUTILAÇÃO, USO DE DROGAS, RELACIONAMENTOS ABUSIVOS]
É o primeiro livro da Gillian que decidi ler, mesmo que a primeira recomendação dos leitores sejam para que a gente comece com Garota Exemplar, então vamos lá:
O plot gira em torno de Camille, uma repórter mediana em um jornal ignorado em Chicago, que recebe uma proposta de voltar a sua cidade natal para escrever uma matéria sobre o assassinato de duas garotinhas.
A princípio, achei que seria só uma trama investigativa, sem grandes estardalhaços. Acontece que, a medida que vamos destrinchando a história e vamos conhecendo a Camille e tudo aquilo que cercou a infância dela, percebemos que as coisas vão muito além disso.
Adora, a mãe de Camille, foi uma personagem que me desagradou desde a primeira menção (sobre sua indiferença e sua amabilidade fingida), e a personagem se torna cada vez mais insuportável no decorrer do livro, quando Camille conta sobre como foi (des)tratada e negligenciada, e de como a morte da irmã mais nova a abalou. Cidades pequenas escondem segredos, esse é um clichê que eu amo, e a família de Camille é cheia deles.
Ainda sobre a família, a imagem da Amma me chocou em tantos níveis, que é difícil de explicar. Uma menina de 13 anos (assim como suas amigas), que é hipersexualizada e envolvida em um grupo social extremamente conturbado e problemático, onde se encontra com homens mais velhos, faz uso de drogas e bebidas e mantém uma fachada de garotinha perfeita. A autora em momento algum romantizou a situação dela, os comentários de Camille sobre as ações da meia-irmã deixam claro o seu desagrado com tudo o que houve, mas lhe falta força para impor aquilo que seria correto (porque, pelo que notei, Camille sente dificuldade em dizer o que é certo ou errado para Amma, porque ela mesma fazia coisas igualmente perturbadoras com a mesma idade da menina). A personalidade da garota é assustadora, uma mistura de maldade e crueldade, que eu não achei que aconteceria no livro. Tudo, é claro, em decorrência da mãe perturbada e dissimulada que Adora era.
Desde o começo ficou extremamente claro que o John não era o assassino das meninas, não apenas pelo sofrimento que ele demonstrou (e que foi usado para taxá-lo de homossexual) pela perda de Natalie, mas porque a sinceridade e o modo como agiu desde o começo simplesmente não batiam com o de um assassino de crianças. Não somente isso, há comentários entre os moradores de que somente um "homo" poderia ter matado duas meninas e não ter abusado sexualmente delas, pois "não conseguiria sentir tesão". É simplesmente grotesca a visão que possuem do John por ele não exalar aquela masculinidade presumível.
Sobre o Richard, esse sim foi um personagem no mínimo controverso desde o começo. É claro que a identidade dele como agente do FBI lhe daria várias vantagens, e no começo achei que ele fosse o tipo de homem escroto e babaca. Acontece que, mesmo com uns erros de conduta, o Richard é um bom detetive, e me surpreendeu que ele escondeu as suspeitas dele sobre Adora por tanto tempo, e que ele havia, de fato, inicialmente se aproximado de Camille por querer informações sobre a mãe. O que não consegui entender no final, foi o motivo dele ter sido tão esquivo e ignorante em relação aos cortes no corpo de Camille.
A Camille é uma personagem complexa e interessante, você sente empatia e necessidade de entendê-la do começo ao fim. A vergonha que ela sente do próprio corpo e da história dela, de como ela omitiu para Richard que a garota de 13 anos que havia sido estuprada por quatro caras era na verdade ela, de como o alcoolismo a afeta e a vontade de ser amada (de ter uma figura maternal ou parental) por alguém a destruiu... Tudo isso foi chocante. O editor, Curry, foi um personagem importante em oferecer apoio emocional e conforto para a Camille do começo ao fim, é nítida a preocupação que ele tem com a mulher e isso me fez ficar apegada a figura dele.
Os nativos da cidade pequena são desagradáveis, sejam pelas fofocas ou por suas histórias padronizadas, ou pela realidade cruel imposta a algumas das garotas que foram conhecidas de Camille quando ela era mais nova. Uma passagem que me deixou afetada foi quando Camille comentou sobre as mesmas garotas que eram feitas de chacota no colégio serviam hoje de empregadas para as garotas que as maltratavam.
É claro que, quando chega no final do livro, pensamos que tudo está resolvido: Adora presa pelo assassinato da filha e das outras meninas, Amma com a oportunidade de crescer e viver em um ambiente muito mais saudável, e Camille de volta a Chicago com a irmã mais nova no reboque. Acontece que... Bom, é a Gillian Flynn. O plot twist do final, quando Amma surta de ciúmes por Camille e mata outra menina, nos dá finalmente todas as peças do quebra cabeça: quem matou Ann e Natalie foi Amma, furiosa porque a mãe que lhe envenenava estava sendo mais atenciosa com as garotas problemáticas. O mais engraçado é que John, o acusado desde o início dos crimes, foi o mais inteligente em suspeitar da Amma desde o começo.
Achei um livro inteligente, a escrita crua e direta da Gillian me lembrou um pouco da escrita da Colleen Hoover em Verity. O plot é ótimo e as problemáticas explicitas foram bem colocadas. Fiquei chocada porque comecei lendo sem saber dos gatilhos que tinham no livro, não que sejam um problema para mim, mas foi chocante ler e se deparar com algumas coisas bizarras que acontecem no livro (como a Amma se expondo e sendo sexualmente explícita para o Richard).
Pretendo ler os outros livros da Gillian e espero continuar me surpreendendo com ela.