Kath 17/07/2022
Nostálgico e fascinante
Que nostalgia gostosa poder reler esse livro tantos anos depois. Esse foi meu primeiro contato com Machado de Assis de quem, inclusive, eu ainda nem tinha ouvido falar por não ter aulas de literatura que só viriam a acontecer no ensino médio. Eu estava no começo da adolescência e era uma frequentadora assídua da biblioteca, tanto para descobrir histórias novas quanto para fugir do meu assustador professor de geografia (que Deus o tenha consigo). Peguei o livro por pura curiosidade mesmo, achei a capa bonita, na época era uma versão adaptada que tinha uma pintura bem chamativa na capa. Lembro nitidamente como a prosa poética e sedutora de Machado luziu aos meus olhos e não demorou muito para que eu ficasse apaixonada e virasse o livro inteiro num dia, incapaz de parar de ler.
A história começa quando Luis Garcia, um homem taciturno e frio, recebe um bilhete de uma rica mulher que lhe pede que vá vê-la para pedir ajuda em algo. Quando sai do trabalho (que não é explicitado qual é) ele vai até a casa da mulher que lhe conta os problemas que está tendo com seu filho Jorge, rapaz que parece estar apaixonado por uma mulher que ela desaprova como sua esposa. Assim, tendo se encerrado todas as chances de afastá-lo dela, Valéria, a mãe de Jorge, pede a Luis que lhe ajude a convencer o filho a aceitar se alistar no exército, nesse período acontecia a guerra do Paraguai e, mesmo diante da possibilidade da morte do jovem, a mulher se mostra irredutível.
O objeto de tal amor é Estela, uma jovem que fora acolhida por Valéria já que o pai é um tanto quanto inadequado para sua formação e, tendo falecido a mãe, lhe faltava orientação feminina adequada que um velho de intencionalidade duvidosa e tendência a adulação não tinha. Moça ajuizada, orgulhosa e impassível tanto quanto implacável, Estela era a companhia de Valéria a quem escutava e atendia com filial solicitude e sem nunca esperar nada em retorno. Consciente de sua posição — tanto social quanto na família da sua benfeitora —, não tinha quaisquer ambições ou pretensões que alçassem sua mente a um lugar além do seu merecimento. Por isso, ao saber dos sentimentos de Jorge, não apenas saiu da casa de Valéria, como prontamente o recusou de imediato, separados pela diferença social e pelo orgulho que não era capaz de aceitar nada que não viesse de seu próprio esforço e escala.
Magoado com a recusa dela, Jorge aceita a proposta da mãe de se alistar como uma maneira de provar seu amor à Estela e faz confidência desse sentimento à Luis Garcia, sem, contudo, revelar a identidade do objeto de seu desejo. Parte então o jovem para os horrores da guerra, mais determinado a findar sua existência que a retornar com glória ao lar. Nesse entremeio somos apresentados à Lina, a filha única de Luís Garcia que, carinhosamente, apelidou-lhe Iaiá. Sendo não somente sua única herança da esposa, a quem não amava, mas por quem tinha especial estima, Iaiá era a luz dos olhos de Luís que procurava mimá-la dentro e fora das suas possibilidades. A moçoila estudava em um internato e vinha para casa nos fins de semana alegrar a vida do pai que esperava ansioso por esses dias.
As artimanhas do destino colocam Iaiá no caminho de Estela que, com a partida de Jorge, voltou a frequentar a casa de Valéria, esta disposta a casá-la vê como positivo o interesse da jovem por Luís Garcia e, o apreço por sua filha é o arremate para a disposição do homem, já não mais tão jovem, a aceitar dar nova chance ao matrimônio. Como na primeira vez, não foi o amor, mas a conveniência e o apreço mútuo que levou Estela e Luís ao altar, ambos não apenas cientes, mas confortáveis na situação uma vez que o amor era uma impossibilidade para uma e um desconforto para o outro. Iaiá, extremamente satisfeita com o enlace, tinha em Estela uma irmã e uma mãe postiça por quem tinha respeito e carinho genuínos. Valéria, após contrair doença, acaba por falecer antes do retorno do filho que recebe nos campos de batalha a triste notícia da perda de sua mãe e do casamento de Estela com seu confidente.
Quatro anos depois, Jorge retorna ao Rio de Janeiro com todas as honrarias da guerra adornando sua farda, mas nenhuma paz no espírito. As modificações de caráter e os golpes recebidos nos campos de batalha não puseram fim ao amor obsessivo que remanescia contrariando todas as suas expectativas, mas refrearam-no dada às condições que agora se encontravam. Estela era para ele inatingível e, não fosse sua estima e amizade por Luís Garcia, seus caminhos jamais tornariam a se cruzar. É nessa reaproximação com o antigo amigo da família, que ele conhece Iaiá, ainda sem molde pelas últimas reminiscências da infância cobrindo os primeiros anos da adolescência e, moldados pelo gênio mimado de sua criação, eram provocador do sufocar da beleza conferida pela vida e a genética.
Todavia, a mente afiada de Iaiá começa a suspeitar que há algo estranho entre Jorge e Estela embora a inocuidade pueril lhe impeça de distinguir o que exatamente. Aliado a isso, o ciúmes do pai com o homem a levam a detestá-lo em especial por ele lhe parecer indiferente e a frieza dela desconcerta o rapaz que não tem ideia da razão de ter despertado nela tamanha aversão. Quanto mais a desconfiança de Iaiá aumenta, mais a proximidade dela com Jorge se torna um artifício para atingir a verdade e, nesse percurso, o rumo de seus sentimentos também se transforma. Mas o segredo do passado intrincado no pequeno meio pacífico do seu círculo pode ameaçar esse novo sentimento.
Revisitar essa obra tantos anos depois me deu a gostosa sensação de ler ela pela primeira vez e, nessa ocasião, pude ter acesso ao texto integral o que foi melhor ainda, pois desfrutei da história com todos os pormenores e particularidades da poética e ágil prosa machadiana. Depois de ter já lido alguns livros de Machado depois de adulta, sempre volto à opinião que, independente de quão magistral seja Don Casmurro, Iaiá Garcia sempre será meu eleito. A história simples, cotidiana e dramática desse livro consegue mexer comigo em todos os sentidos e despertam o lado romântico que muitas vezes até chego a esquecer que possuo (por não usar hahaha). É um livro de 1878, mas se aplicaria tão bem ao momento presente quanto uma divertida e intrigante história de Jane Austen.
Iaiá é uma adolescente chata, imediatista e voluntariosa como são todos os adolescentes na idade dela e, talvez por isso, na época em que o li pela primeira vez, tenha sido, para mim, uma identificação tão imediata que me levou a outro livro dele que me tocou de uma maneira diferente: Helena. E me levou a buscar outros autores clássicos ainda naquela época como José de Alencar de quem lembro que não gostei (provavelmente voltarei a dar uma chance a ele agora adulta para ver se minha opinião muda). Fico me perguntando se, ao invés das complexidades de Don Casmurro, livros como Iaiá Garcia não seriam uma leitura mais aceitável para apresentar Machado a adolescentes, e só então avançar para leituras mais exigentes. Contudo é apenas uma visão minha.
Todavia, embora a premissa de Iaiá pareça simples, sua construção de todo não é. Temos um complicado triângulo amoroso que se desmonta com boas doses de suspense sobre o futuro dos personagens, especialmente dado o comportamento imaturo da personagem título e o olhar que recai sobre o texto e a conduta desses personagens varia de acordo com o momento da vida em que lemos a história. Minha visão aos 14 anos não é a mesma que agora na casa dos "inta". Se você nunca leu Machado, eis uma boa maneira de começar. Iaiá Garcia não é complexo e, de maneira alguma, enfadonho, mas a ausência de complexidade e seu tom dramático puxado para a tragédia não diminui, em nenhum aspecto, a bela construção de suas personagens e o enredo bem articulado, fluido e sedutor que Machado, e apenas Machado, tem.