Lucas 05/01/2020
Fecham-se as páginas do romantismo: O último trabalho machadiano antes do realismo
Ler qualquer trabalho de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) traz, no leitor mais assíduo, as características inequívocas que tornam o "Bruxo do Cosme Velho" como o principal nome da história da literatura brasileira. Mais que um autor, ele é um símbolo de criatividade e dinamismo, tamanha a sua habilidade em escrever nos diversos estilos (romantismo e posteriormente realismo), como também na sua imensa produção literária (dez romances, mais de duas centenas de contos e várias peças de teatro e poemas).
Além dessa importância histórica, ter um trabalho de Machado de Assis em mãos quase obriga o leitor a situar dentro da carreira do autor a que movimento ele se refere. Isso porque Machado iniciou sua trajetória ainda dentro do movimento romântico da segunda metade do século XIX e, sutilmente, partiu para o realismo e esta transposição o fez responsável pela implantação no Brasil da literatura realista, seguindo um movimento europeu que já vinha desde a década de 1850. Detalhes biográficos do escritor definem-no como um homem muito ligado a aparências sociais, mas que não se preocupava com rótulos acadêmicos (ele nunca frequentou uma universidade), não tendo assim "amarras" próprias que, inevitavelmente, iam traçando o caminho que os grandes escritores daquele tempo acabavam percorrendo. Talvez por isso a mudança de estilo em Machado tenha sido tão simultaneamente abrupta e natural.
Da carreira de dez romances, os quatro primeiros são os ditos românticos de Machado de Assis, aqueles ainda dentro do movimento predominante da época. O último desses trabalhos é Iaiá Garcia, lançado em folhetim no jornal diário O Cruzeiro, nos primeiros três meses de 1878 e posteriormente publicado em volume único, ainda no mesmo ano.
Iaiá Garcia se passa entre 1866 e 1871 (aproximadamente) e narra a história de todo um círculo social que gira em torno da personagem que dá título ao romance. Inicialmente uma menina de onze anos, apenas aos poucos Iaiá vai assumindo os ares de protagonista que o título sugere e este aspecto corresponde a um traço criativo de Machado de Assis, assim como é visto em Helena (1876). Este círculo social mencionado parte da figura de Jorge, rico e abastado jovem pertencente à sociedade carioca mais rica e sua mãe, Valéria. Órfão de pai, Jorge acaba gerando em sua mãe preocupações naturais para que se arranjasse um casamento que estivesse a sua altura (algo também recorrente em Machado de Assis, a sua crítica sutil aos arranjos matrimoniais, que eram muito comuns na época).
Valéria era uma mulher materialista, de fato, mas não assume ares de vilania por agir de forma protetora ao seu único filho. Em tese, ela se ressente por Jorge não possuir a figura paterna, sempre essencial ao mancebo que se via diante da introdução mais decisiva na sociedade adulta. Por isso, a obra começa com Valéria pedindo conselhos ao viúvo Luís Garcia, pai de Iaiá, de classe média, mas um protegido do falecido pai de Jorge e que cuja opinião era sempre levada em conta. O drama de Valéria tem a ver com uma paixão não resolvida de Jorge com uma moça de um estrato social "inferior".
Este drama particular lança luz a dois outros personagens do livro: o primeiro é Estela, uma moça protegida de Valéria, criada pela mãe de Jorge e que passou boa parte da sua vida até então vivendo com eles. Estela, também órfã de mãe assim como Iaiá (chama a atenção a questão da viuvez no romance) era filha do Sr. Antunes, que também possuía relações com o marido de Valéria, mas que era nitidamente pertencente a uma classe social mais baixa. O segundo personagem mencionado, esse não fictício, é a Guerra do Paraguai (1864-1870), vencida pela Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Detalhes bélicos ou mais específicos com relação ao conflito (que dizimou o Paraguai) não são mencionados pela narrativa, mas a guerra assume um papel de destaque no primeiro terço da obra e provoca algumas reviravoltas até surpreendentes nos destinos dos personagens citados.
Tem-se assim um círculo amoroso de difícil solução, marcado por um ceticismo narrativo que não condiz muito com o romantismo em voga na época. Aliás, este é o estilo romântico de Machado de Assis: suas histórias nessa primeira fase da sua carreira não são marcadas por sentimentos como devoção cega, pureza total ou excessivos floreios e cavalheirismos. De fato, declarações de amor poéticas e sentimentais são sim enfocadas na narrativa, mas de uma forma bem pontual; o traço maior do narrador (que assim como em Helena é onisciente e não participa da história) é contar ao leitor um romance mais objetivo e direto. A pouca frequência de diálogos e as concisas descrições dos sentimentos de determinados personagens por meio de argumentações do narrador são traços mais claros desse mecanismo narrativo que, se não emocionam o (a) leitor (a) mais romântico (a), são incapazes de afetar nem mesmo minimamente a qualidade do que está sendo narrado.
Jorge, o protagonista masculino do livro, condensa para si esse papel de objetividade dentro do romance, sendo um cavalheiro que não parece ser capaz de exceder os limites da razão em nome do amor, mas que tem a sensibilidade necessária para compreender a importância desse sentimento. Colocando-o dentro da já citada fase de transição que marcou a obra dentro da carreira de Machado de Assis (seu livro seguinte, Memórias Póstumas de Brás Cubas lançado em 1881 implantou o realismo no Brasil), ele também toma para si a maioria dos nuances realistas que tão bem marcaram esse movimento, como a ironia e a descrença, que em Jorge aparece em momentos pontuais. Por estes motivos, a figura de Jorge é literariamente importante, não apenas para o romance, como também para tudo o que se viu depois nos escritos de Machado de Assis.
Iaiá Garcia é o derradeiro e o mais representativo dos trabalhos da fase romântica de Machado de Assis. De leitura breve, leve e bem instigante, o autor se despedia da fase romântica com traços cirúrgicos do realismo que tão bem o marcou nos anos e trabalhos seguintes. E essa despedida merece ser lida, seja para que se compreenda esse movimento de mudança de estilo dentro da oralidade de Machado, seja para que se mergulhe num romance longe de emocionar, mas com uma sagacidade sentimental significativa sem ser exagerada.