MatheusPetris 22/04/2021
Na Efígie do Tempo
“Hoje, que o temporal do Destino do Passado
e sobre o meu Presente espessas sombras lanças,
fulgure ao menos meu Futuro, iluminado
por ti, pelo que é teu, na mais doce esperança.”
- Edgar Allan Poe (Hino)
Neste quarto romance Machadiano, seus contornos estão nitidamente mais profundos. Sabendo-se amplo, parece abrigar cada um dos romances predecessores, amalgamar certas personagens, como também fecundá-las em novos espécimes. Será mesmo que encerra uma fase? Existiram fases? A questão aqui, não será essa. Se a coloco, é pela inquietação de discordar de certas categorias “didáticas”, facilitadoras, embalsamadoras. Seus romances são um continuum, avançam, se embrenham enquanto crescem. Machado não deixa espaço para o enciclopedismo. Se o definem, ele rompe as definições. Se, IaIá Garcia (1878) tem um enredo romântico, não se limitará a passear por essas reflexões, mas, partirá delas para chegar num mais além.
Sem mais delongas, vamos ao caso. O tema que perpassa todo livro, e que tomará proporções elementares próximo à sua conclusão, é o do tempo. Pensemos, num primeiro momento, nas digressões do narrador. Ainda que timidamente utilizadas nesse romance, já nos revelam seu caráter embrionário, que irá fulgurar e chegar ao zênite em Dom Casmurro. O corte na cronologia narrativa, nos revelam as marcas do passado das personagens; invadem o presente da narrativa para caracterizar suas dores e angústias. Pouco a pouco, a densidade das personagens vai tomando ares (quase) metafísicos.
Em diversos momentos o presente é contemplado, ou, melhor dizendo, observado cruamente; as personagens entrecruzam olhares. O narrador também observa, oculta certos diálogos, o não dito vigora em vários diversos planos. Se a narrativa fica suspensa, é pela força de suas personagens. Em comparativo aos romances anteriores, sua narração é cada vez mais sutilmente construída, dá cada vez mais espaço aos silêncios e é pautada cada vez menos em diálogos. O narrador ganha cada vez mais força, a ficção brota de todas as entranhas.
Os questionamentos do narrador, um perguntador inveterado, não só movimentam as personagens, como refletem sobre a vida. Se personagens contrastantes tentam exercer sua autonomia enquanto “cada um deles falava língua diferente”, é também que “essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a esbarrar-se, no caminho de seus destinos.” Como Machado avisa no apêndice de Ressurreição, do qual já escrevi sobre, é através destes contrastes que se desenrola sua trama. Algumas vezes, eles esbarram-se, em outras, afastam-se.
Personagens em constante fuga. Fogem dos próprios sentimentos. Algumas por orgulho, outras por temperança, comodismo… Todavia, uma das grandes questões nesse embate soturno e solitário, está nas sombras do passado. Estela é aquela que representaria tal força temporal, onde guarda chagas indeléveis. Se dissimula, não é apenas para ocultar seus verdadeiros sentimentos a sociedade, mas para si própria. Porém, seu ar de impassibilidade, acaba por desvelar seu interior. Nem tudo passa despercebido pelos olhos do seu círculo. Principalmente da enfant terrible, IaIá Garcia, a força que dá o nome ao romance. Esta, que representa o fogo do presente (que deseja queimá-lo, para alcançar o futuro), também teme o passado, sente ciúmes daquilo que foi. Ela se sente perdida, violada, cada vez mais confusa, ao cabo que “o mistério do futuro unia-se ao mistério do passado; um e outro podiam devorar o presente, e ela receava ser esmagada entre ambos.”
No meio de uma floresta, perseguidas pelas sombras do passado, atormentados pelo futuro obscuramente nublado, as personagens caminham receando apalpar qualquer fruto; elas, também são atormentadas pela morte e, se num momento é posta como uma ameaça, no outro sucumbirá em tragédia, gerando assim, inevitáveis escolhas.
Só nós e o narrador sabemos tanto. A verdade continua — se é que ela existe — ensimesmada em seus possuidores. Respostas concretas aos anseios e dúvidas? Não serão dadas, continuarão no passado. Entretanto, o sofrimento de uma vida infeliz, impedirá o sofrimento de outra. O orgulho transmutou-se em amor ao próximo. “Se eu sofri, você não sofrerá”, frase que poderia ser pronunciada por Estela, mas que se restringe a este texto.
Posto isso, se o desenlace final é envolto de hesitações, é pela congruência de tanta dissimulação, de tanto cálculo, como também, de tantas dúvidas. Seja em aparência, ou em realidade. Aos olhos de cada personagem (e também do narrador), a desconfiança é uma cicatriz palpável. O final no cemitério, se ajusta à última frase do livro: “Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões.”