Marcelo.Miranda 25/06/2023
Tudo é aliado da MULHER que sabe querer
Sempre me causou intenso incômodo essa divisão que os “especialistas” impõem em relação à obra machadiana, como se o suprassumo, o ouro, os trabalhos de qualidade tivessem engatado apenas a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, e tudo o que viera antes não passasse de rascunhos, trampolins ou resultados de uma “fase imatura” do autor.
Pode notar, caro leitor, como essa galera, muitos com os carimbos e diplomas de doutores universitários, sempre trata essa fornada literária com condescendência. Eu já cheguei a ouvir pérolas sobre o livro Contos Fluminenses, que na ocasião fora tachado como “contos menos bons do Machado”. É vergonhoso que tais ideias equivocadas sejam difundidas por acadêmicos, pois elas acabam sendo assimiladas pelo público leitor e até pelo mercado editorial.
Obras de altíssima qualidade são relegadas à segunda divisão. Não à toa nós não encontramos com facilidade edições robustas delas sendo lançadas, como faz a Antofágica com os livros populares, por exemplo. Sempre o pingue-pongue de Dom Casmurro, Memórias Póstumas e um punhado de contos.
Pois bem, registrado o desabafo, vamos ao que interessa, a análise de A Mão e a Luva. E que obra magnífica! Aparentemente mais uma história de mulher dividida entre a escolha de seus pretendentes, mas, claro que isso logo é desmentido quando a nossa anti-heroína entra em cena. A Guiomar talvez seja a grande personagem feminina machadiana. Quer dizer, talvez não, eu digo que ela realmente é. Até a leitura desse livro eu era partidário da Sofia, de Quincas Borba. Só que a Guiomar é fria, calculista, arrogante, ambiciosa e só não chega a ser arrivista por falta da ocasião que faria o ladrão. Personagens como Capitu, Helena, Marcela e Sofia são vistas em suas respectivas obras sempre com o filtro do olhar do personagem masculino principal (ao menos na maior parte do tempo). Aqui não. Aqui nós vemos a Guiomar desnudada, sempre ponderando a cada momento se determinada decisão terá impacto no afeto da madrinha. Claro, em nenhum momento é posta em dúvida que ela realmente sinta afeto pela baronesa, mas o narrador não deixa de mencionar que o fato dela ser rica torna as coisas muito mais convenientes. Eu enfatizo a parte do salvamento da futura professora e o demérito de um trabalho para provar o ponto.
Trata-se de uma personagem de caráter questionável. Por exemplo, ela fica o tempo todo incomodada com a governanta inglesa, Mrs. Oswald. Para ela, é revoltante que uma empregada queira interferir na relação entre afilhada e madrinha, até porque alguém de “status social inferior” estava empurrando um pretendente na jogada, mas há uma contenção da fúria, porque Guiomar sabe que isso não trará benefícios. E lá vemos a personagem fingindo mansidão. Uma ligeira luta de classe sendo escamoteada.
Só que, na minha opinião, a parte mais intrigante é como ela reage aos 3 pretendentes, cerne da obra. Existe um sadismo no trato de Guiomar com Estevão. É o machado zoando os ultrarromânticos usando o advogado como alegoria. E olha que ela não faz o mesmo com o Jorge, afinal, este é um sobrinho da baronesa. Que mulher sacana, não?
E sobre o Estevão, gosto como o Machado quebra a expectativa, pois o início da história foca tanto nos arroubos românticos do advogado, que acabamos por imaginar que se trataria do “herói” da história, mas ele é achincalhado por todo mundo, e não coincidentemente trata-se do pretendente menos abastado financeiramente. E menos ambicioso que Luis Alves, principalmente.
A história segue o seu ótimo fluxo, desdizendo a falsa modéstia do autor na nota em que pede desculpas pelas incongruências típicas de algo originário de um folhetim. O desfecho é digno do título. A Mão e a Luva tem que estar na primeira prateleira da literatura brasileira, qualquer coisa menor do que isso é subestimar essa obra-prima.
Sobre a edição, eu li a 19. ed. da editora Ática, e sorte dos leitores (eu sou um sortudo) que deixarem para ler os textos de apresentação e de contracapa após a conclusão da história, já que eles possuem spoilers desnecessários.