spoiler visualizarAna Caroline 29/11/2014
"Inocência" de Visconde de Taunay
A obra “Inocência” foi publicada em 1872 e divide-se em trinta capítulos, todos eles iniciados por citações. Como se diria da obra “Lucíola” de Alencar tratar-se de uma releitura abrasileirada de “A Dama das Camélias”, “Inocência” é uma versão sertaneja do shakespeariano romance entre Romeu e Julieta.
O autor: Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, primeiro e único Visconde de Taunay, (Rio de Janeiro, 22de janeiro de 1843— 25 de janeiro de 1899) pode ser considerado profissional eclético: músico, artista plástico, professor, engenheiro militar, político, historiador e sociólogo. Aristocrata de família francesa, Taunay estudou literatura, física, matemática e ciências naturais. Casou-se com Cristina Teixeira Leite, filha do barão de Vassouras, neta do primeiro barão de Itambé e sobrinha-neta do barão de Aiuruoca. Seu filho foi o historiador Afonso d'Escragnolle Taunay, membro-fundador da Academia Brasileira de Letras.
Tendo lutado na Guerra do Paraguai como engenheiro militar, de 1864 a 1870, publicou seu livro “A Retirada da Laguna” (1869). No dia 26 de abril de 1876, foi nomeado presidente da província de Santa Catarina. Em 1877 inaugurou, no Largo do Palácio, atual Praça Quinze de Novembro (em Florianópolis), o monumento aos heróis catarinenses da Guerra do Paraguai. Inconformado com a queda do Partido Conservador, retirou-se da vida política em 1878. Regressando, em 1885, foi nomeado presidente da província do Paraná. Recebeu o título de visconde de D. Pedro II em 6 de setembro de 1889. Com a proclamação da República naquele mesmo ano, Taunay deixou a política para sempre.
A obra: O primeiro capítulo de “Inocência” parece introduzir uma obra que será tão enfadonha quanto “Iracema” de Alencar. O que o crítico Gurgel chama de “tendência irrefreável à verborragia1” – ou “aula de empolamento2 e enfadar leitores”, mania de “adjetivar” quando pretende “enumerar detalhadamente” – é gritante nos primeiros parágrafos que pretendem descrever o clima e a paisagem do sertão. A primeira referência a alguma sensação ou impressão humana leva algumas páginas para aparecer e assim se apresenta: “Ao homem do sertão afiguram-se tais momentos incomparáveis, acima de tudo quanto possa idear a imaginação no mais vasto círculo de ambições” (p.9).
No entanto, a partir do segundo capítulo o romance muda de ambiente e, aliás, o ambiente é menos central na narrativa. Neste mesmo capítulo o autor nos apresenta o protagonista, Cirino, que “tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido” (p.17). No terceiro capítulo, “O doutor”, uma descrição mais detalhada do herói:
Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, título inerente a sua pessoa e a que tinha incontestável direito.
Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no íntimo do seu caráter havia insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que sempre vivera.
Afastava-se em todo caso, ainda assim com seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram frequentemente naquelas paragens, eivados de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais.
Por toda a parte entra, com efeito, o doutor, penetra no interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesa dos hóspedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem caído do céu e junto ao qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já enfermos, mas fanatizados crentes, que durante largos anos se havia medicado ou por conselhos de vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada desse Messias depositam todas as suas ardentes esperanças do almejado restabelecimento. (p. 35)
O “doutor” Cirino, portanto, embora carregado de chavões, não se trata de mais herói de perfeita índole moral, tem uma certa complexidade fora do lugar-comum. Ele conhecerá sua paciente, heroína da história, Inocência, no capítulo sexto. Moça simples, filha do sertanejo machista, Pereira. O pai, super-protetor da filha que estima absurdamente, diz:
Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!… Se não tomam estado, ficam jururus e fanadinhas…; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado… E depois, as histórias!… Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo… São redomas de vidro que tudo pode quebrar… Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais… O Manecão que se agüente, quando a tiver por sua… Com gente de saia não há que fiar… Cruz! botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho. (p.48)
Inocência, a Julieta do sertão, não é tão inocente quanto faz supor seu nome. “Pouco aparece no livro, escondida numa espécie de gineceu, mas, quando surge, comporta-se de maneira a ratificar as idéias machistas de Pereira: mal conheceu Cirino, age como sua cúmplice e, instintivamente, finge diante do pai” (GURGEL, p.74). Dela teremos lido algumas poucas referências a aparência física (frágil e dócil) e meia dúzia de declarações de amor. Inocência e Cirino, apaixonados, sofrem com a promessa de casamento acertada pelo pai da moça ao sertanejo Manecão. O autor narra as primeiras sensações de amor de Cirino:
Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas, explosivas, irresistíveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda parte, prendem-na de mil modos e a sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como era dos hábitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades, tamanhos obstáculos diante de si, que, se de um lado desanimava, de outro mais sentia revoltado o nascente e já violento afeto. (pp.125-126)
Passam-se os últimos capítulos sobre as tentativas do casal de livrarem-se do indesejado casamento e conquistarem licença para uma união de amor e não de convenção. Descobertas as ousadas tentativas do jovem “médico”, Manecão e Pereira planejam sua morte e, depois de acertado o plano, Manecão dá por finda a vida do doutor com um tiro a queima roupa. Inocência morrerá em seguida, certamente de desgoso. O último parágrafo da obra registra: “Inocência, coitadinha... Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant'Ana do Paranaíba, para aí dormir o sono da eternidade” (p.243).
Entre os personagens “secundários” encontraremos Tembel Meyer (naturalista viajante em busca de insetos, especialmente novas espécies), seu criado José – que virão a hospedar-se na casa da família Pereira e deixar o pai de Inocência azedo e desconfiado – a cozinheira da família Pereira e o empregado, anão, Tico.
Para o crítico Rodrigo Gurgel, “Inocência” é um “romancinho sentimental”, “valioso, mas desigual” e que tem recebido elogios exagerados. Para ele, a obra é alvo da costumeira mania dos principais críticos brasileiros:
Trata-se de uma prática rotineira entre nós, infelizmente, chamar de genial o apenas razoável, como se o país, destituído de um número de gênios que corresponda ao tamanho de seu território, se dispusesse a criá-los à força, ainda que, para tanto, fosse obrigado a edulcorar a verdade. E não há exageros em minhas palavras. Leiam os cadernos culturais: aqui, nasce um gênio a cada semana. (p.68)
Ele critica a inabilidade do escritor de conseguir qualificativos/adjetivos ideais aos seus personagens e paisagens, escrevendo, por vezes, infantilizadamente. Mas a análise de Gurgel não se resume a crítica. Ele elogia o esforço e sucesso da obra em ser “o primeiro sopro, razoavelmente feliz, do realismo; o sinal de que, enfim, a temática dos nossos escritores começava a mudar e, lentamente, afastava-se da estética romântica” (p. 69). Ressalta também a qualidade dos perfis e vozes de alguns personagens, afirmando que muitos dos diálogos são “plenos de naturalidade” e merecedores de elogios.
Referências
TAUNAY, Visconde de. Inocência. Editora Melhoramentos, 2012. 248 pp.
GURGEL, Rodrigo. Muita Retórica, Pouca Literatura: De Alencar a Graça Aranha. Campinhas, SP: Vide Editorial, 2012. 228 pp.
______________. Valioso, mas desigual. Jornal Rascunho, online. Gazeta do Povo. Artigo disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/valioso-%E2%80%94-mas-desigual/
site: http://www.vlogoteca.com/desafio-literario/5-visconde-de-taunay