aldogusmao 20/05/2022
Um clássico obrigatório.
?Foi assim que, após o Dilúvio, a Precipitação Radiativa, as pragas, a loucura, a confusão de línguas, a ira, começou a carnificina da Simplificação, quando os remanescentes da humanidade esquartejaram outros remanescentes, membro a membro, matando governantes, cientistas, líderes, técnicos, professores e todas e quaisquer pessoas que os lideres das turbas ensandecidas dissessem que mereciam morrer por terem ajudado a tornar a Terra aquilo que ela havia se tornado. Nada tinha sido mais odioso aos integrantes das turbas do que os homens instruídos; no princípio, porque haviam servido aos príncipes, mas depois porque se recusavam a participar das carnificinas e tentavam se por às turbas, chamando aquela multidão de "corja de simplórios com sede de sangue".
Acabei há pouco de reler ?Um Cântico para Leibowitz? de Walter Miller Jr. O livro foi publicado em 1959 e ganhou o prêmio Hugo em 1961. Eu já o havia lido, quando tinha vinte e poucos anos. Lembro que na época achei o livro bastante impressionante, mas provavelmente o compreendi muito pouco, já que não sabia uma fração do que sei atualmente sobre filosofia, história e ciência. Portanto essa releitura foi como uma primeira vez. E me deixou ainda mais impressionado, o que não tem ocorrido com frequência nas minhas leituras. O livro é absolutamente extraordinário, metafórico, com muitas camadas de significado. Sua erudição é algo raro de se ver na literatura contemporânea.
A estória transcorre em um mundo pós-apocalíptico, em que a Terra foi devastada por uma guerra nuclear e quase todo o conhecimento acumulado pela humanidade foi perdido. O enredo parece banal. Você já deve ter visto dúzias de livros e filmes com esse tema. Mas o livro de Miller vai muito além. Ao criar uma ordem religiosa católica que se dedica a preservar a memorabilia da espécie humana, Miller envereda por referências históricas (mais ou menos evidentes) e discussões filosóficas e teológicas que fazem o leitor parar para refletir ou pesquisar alguma questão mais intrigante. A própria estrutura do texto, cheio de citações em latim, reduz a velocidade da leitura. Mas não de forma leviana, puramente estilística ou pretensiosa (a edição traz um glossário e uma lista com a tradução de todas as frases em latim). Todas as citações são pertinentes e colocadas no lugar certo, com precisão cirúrgica, provocando uma pequena pausa que leva o leitor a pensar e compreender melhor o que leu ou vai ler a seguir. Às vezes o leitor se pega lendo rapidamente algum trecho que parece desprovido de significado mais profundo, para logo se dar conta do engano, retornar, e ler novamente, dessa vez com a correta compreensão da intenção do autor.
Eu não costumo comentar todos os livros que leio. A maior parte não vale o esforço e os que valem já foram esmiuçados por críticos muito melhores que eu. Mas Um Cântico para Leibowitz é um livro pouco conhecido pelos leitores brasileiros, mesmo aqueles que são fãs de ficção científica. Por isso achei pertinente essa pequena resenha. Também não tenho o hábito de fazer anotações e destaques em livros de ficção, mas ao terminá-lo, o livro estava cheio das marcas da minha leitura e isso mostra o quanto ele me tocou. Se você está interessado em uma leitura instigante, muito além do mero entretenimento, não deixe de ler esse livro. Não se assuste com a minha descrição da profundidade do texto. A edição da Aleph é ótima, a leitura é muitíssimo agradável, e se a sua primeira leitura não captar todo o significado do texto, tanto melhor, leia de novo. Como disse Ítalo Calvino, ?Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira?. E Um Cântico para Leibowitz é sem dúvida um clássico. Boa leitura a todos!