spoiler visualizarAguinaldo 08/04/2013
danúbio
Tempos atrás don Robson Reis mostrou-me um filme onde o espectador é convidado a navegar pelo Danúbio e refletir sobre os gregos e os alemães, sobre poesia e tecnologia, guerra e mitologia, numa potente aula sobre a historia recente da Europa, a multicultural e complexa Europa (o filme é The Ister, de 2004, dirigido por David Barison e Daniel Ross, baseado em um curso do filósofo alemão Martin Heidegger). Lembro-me de associar o filme imediatamente com Danúbio, de Claudio Magris, mas não consegui me organizar à época para começar sua leitura. Já no final de 2011 Charlles Campos, leitor dos bons, entusiasta e persuasivo como poucos, começou a incentivar-me a enfrentar as maravilhas de Magris. Mas como os livros teimam sempre em entregar-se apenas se o comprometimento adequado lhes é oferecido, comecei e abandonei a leitura várias vezes, claro. Recentemente, no dia dos 88 anos de meu pai, encontrei o ritmo e a disposição certa para minha viagem pelo Danúbio. E escrevo hoje, dia de meus 52 anos, também eu seguindo um curso mas forçando atalhos, também eu acumulando escolhos, me alimentando de afluentes, procurando e fertilizando meu delta, talvez já próximo demais do grande mar da decrepitude. Proust, em seu "Os prazeres e os dias", já nos ensinou que O mar há de consolar todo aquele que já passou pelos primeiros aborrecimentos. É por isso que penso que talvez as águas de um grande rio também tenham algo deste grande poder, de nos consolar e nos fazer entender melhor. E é talvez por isso que fiquei tão renovado ao terminar de ler esse livro. Mas chega de tergiversar. Danúbio foi publicado originalmente em 1986, portanto antes da queda do muro de Berlim, do fim da União Soviética, da separação de Tchecos e Eslovacos, dos conflitos étnicos nos Balcãs, da consolidação do projeto de unificação da Europa e de tantas cousas que aconteceram naquela região, mas o Danúbio de Magris não é exatamente um ensaio ou algo que deva ser lido com fins puramente didáticos, não é um livro onde "está faltando algo da história". Enfim, se é que o leitor procura uma classificação objetiva do que se trata nesse livro, prefiro confundí-lo ainda mais e usar a definição do próprio Magris, que diz seu livro ser um "romance afogado". Magris percorre muito mais que os quase 3000 mil quilômetros do Danúbio. Das nascentes ao delta não há apenas o curso do rio, as fronteiras que demarca, as grandes cidades que se enfeixam nele, as pequenas cidades (que mesmo distantes) são influenciadas por ele, as sucessivas camadas de histórias, o infindável acumulo de vidas, de batalhas, de registros das experiências humanas. Magris digressa, argumenta, explica, por vezes detalha, noutras apenas cita algo seminal. Lembra um tanto o ritmo dos livros de Sebald (mas as digressões de Sebald são mais sintéticas, mais distantes, menos pessoais). Há um conceito/termo no livro que é fundamental. Magris usa Mitteleuropa (que o tradutor para o português preferiu não traduzir do alemão) para definir não apenas a região central da Europa, mas aquele todo (histórico, político, geográfico, cultural, mitológico) que é basicamente percorrido e definido pelo Danúbio. O livro é dividido em nove capítulos que por sua vez se desdobram em muitos outros, quase textos independentes, onde Magris oferece ao leitor proposições quase sempre ricas e interessantes. Aprendemos algo sobre a arquitetura, a topografia e a náutica; sobre a história dos Habsburgos; sobre a literatura de Franz Kafka, Elias Canetti, Robert Walser e tantos outros; a filosofia de Wittegenstein, Lukács; a música de Wagner, Strauss e Haydn; e muitos causos: sobre Ovídio, Freud, Kraus, Marco Aurélio, Sissi, Hitler, Goethe; Hölderin e muitos outros personagens; e as caudalosas histórias de romanos, gregos, eslavos e turcos. As passagens mais divertidas são aquelas onde o narrador de Magris é acompanhado por Anka, uma sedutora e curiosa avó, que fala das coisas que sabe sobre a região (principalmente no trecho dos Balcãs). O texto de Magris é tão potente, sua erudição tão encantadora e cativante, as informações que oferece tão bem conectadas num mosaico, chave de leitura para tantos temas áridos, que há vezes que o leitor pode até ficar tentado a acreditar que tudo o que aconteceu na Europa após a queda do muro de Berlin está de alguma forma suspeitado no livro, mas ele é apenas um texto, um romance, algo que oferece reflexões. Enfim (e para evitar mais confusões neste texto já confuso), Danúbio não é um exercício de futurologia, que alguém açodado poderia tentar usar para pinçar do livro passagens onde fatos histórico do futuro - do escritor de 1986 - são antecipados ou insunuados por ele. Magris simplesmente constata que há padrões no comportamento humano, que mesmo décadas e séculos são períodos curtos de tempo afinal de contas, que nada que é humano pode ser congelado, fixado para sempre. Enfim, aquele rio por onde os argonautas fugiram do povo da Cólquida (com o precioso Velocino de Ouro, ajudados por Medéia que foram) mil anos antes do início de nossa Era Comum é o mesmo rio dividido e disputado por alemães e austríacos, eslovacos e húngaros, sérvios e croatas, romenos e búlgaros. Uma providência que mostrou-se realmente útil foi a de imprimir um mapa com percurso do rio. Anotei um bocado desta vez, tanto no livro quanto sobre o mapa, pontuando as observações de Magris com meu entendimento do relevo, das fronteiras, dos acidentes de percurso, das histórias de todos os povos que o Danúbio já viu passar. Grande livro.
[início: 22/02/2013 - fim: 04/03/2013]
"Danúbio", Claudio Magris, tradução de Elena Grechi e Jussara de Fátima Mainardes Ribeiro, São Paulo: editora Companhia das Letras (Companhia de Bolso), 1a. edição (2008), brochura 12,5x18 cm., 443 págs., ISBN: 978-85-359-1337-8 [edição original: Danubio (Milano: Garzanti Libri) 1986]