Lucas 28/06/2022
O derradeiro livro de Liev Tolstói: Uma síntese do seu idealizador e das suas ideias ao final da vida
O maior traço característico da literatura russa, aquele que a faz ser tão especial nesse universo, é a sua capacidade de propor narrativas que fogem do caráter ficcional propriamente dito. Não que a excelente ficção novelística, a qual instiga e prende a atenção seja um elemento secundário nos russos: ela caminha em paralelo a precisas e robustas descrições sociais, históricas, psicológicas, filosóficas, políticas, naturais, místicas, antropológicas e por aí vai, as quais dignificam ainda mais a literatura feita na Rússia, especialmente no século XIX.
É por esses motivos que Liev Nikolaievitch Tolstói (1828-1910) personifica a literatura russa: em sua obra, vemos tudo isso. O traço marcante da sua escrita é a pluralidade de discussões paralelas a um sem igual talento narrativo, que deveria ser o ponto nevrálgico diferenciador dele em relação a seus conterrâneos da época. Tais aptidões tão multifacetadas podem explicar em parte a virada em sua vida ocorrida a partir da década de 1880, quando, em decorrência de uma profunda crise moral e íntima ele se torna uma pessoa minimalista e mística.
A tal "crise de fé" é um elemento importante na biografia de Tolstói. Ele, que de todos os grandes autores russos contemporâneos era o que vivia em condições financeiras mais confortáveis (o que permitia que ele vivesse de literatura, desde sempre), começa a se desapegar deste sucesso material (Tolstói chegou a renegar Guerra e Paz (1869) e Anna Kariênina (1877), suas duas maiores obras), abandona boa parte das suas riquezas e passa a viver recluso em uma de suas propriedades. Ao desenvolver uma espécie de doutrina própria e radical de desapego, negação de si mesmo, pacifismo e questionamento de dogmas religiosos, ele é excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa, em função do "anarquismo" que suas crenças particulares são capazes de gerar. O cataclismo moral de Tolstói encontra vários exemplos ficcionais em livros russos, especialmente em Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Por isso, pode-se dizer que Tolstói personifica a literatura russa, já que ele parece ter realizado na prática boa parte das descrições e pressupostos que a literatura do seu país e do seu tempo legou à eternidade.
Esse evento tão impactante inevitavelmente trouxe estilhaços à escrita de Tolstói. "Felizmente", ele apenas renegou as obras anteriores e não o hábito de escrever em si (atendendo a pressões externas, como a de Ivan Turguêniev (1818-1883), Tolstói volta a escrever). Desse modo, as últimas obras da vida de Tolstói são marcadas por uma toada mais mística e socialmente crítica, como Uma Confissão (1879) e A Morte de Ivan Ilitch (1886), a qual traz consigo talvez o maior passamento de um indivíduo na história da literatura. Entretanto, o mais robusto dos seus trabalhos pós-crise é Ressurreição (1899), a qual acabou sendo seu último livro lançado ainda em vida.
A obra, que enquanto Tolstói esteve vivo foi a de maior vendagem de sua carreira, é uma síntese das razões provocadoras da crise existencial do seu idealizador, bem como descreve a sociedade russa às vésperas da sangrenta revolução de 1917. Em Ressurreição, tem-se o protagonista Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov, um típico bon-vivant, emocionalmente irresponsável, de caráter fútil e herdeiro de várias posses. Apesar disso, devido a força do seu "nome", ele participava frequentemente de vários julgamentos, no que seria similar ao que hoje se entende como "júri popular".
Ekatierina Mikháilovna Máslova é a protagonista feminina, uma prostituta acusada de assassinato, a qual participa como ré de um destes júris as quais Nekhliúdov atua. A ligação entre os dois, entretanto, é constituída muitos anos antes: a então adolescente Máslova, empregada em uma propriedade rural das tias de Nekhliúdov, apaixona-se por ele. Nekhliúdov, como praticamente todo rapaz rico, despreocupado e aventureiro, ilude a moça com falsas promessas e, depois de um ato previsível e que é eternamente nojento, descarta Máslova. A partir daí, as trajetórias dos dois continuam em seus caminhos naturalmente conflitantes: Nekhliúdov na carreira militar e depois como administrador de propriedades da mãe falecida e Máslova "largada", vítima incessante do assédio masculino, rejeitada pelas "pessoas de bem" até chegar ao caminho mais provável para mulheres jovens e bonitas nessa condição.
O reencontro entre os dois num júri, cerca de dez anos após a última vez em que se viram e com Nekhliúdov no papel de juiz da sua antiga "paixonite" é o estopim para uma explosão moral no protagonista. Afinal de contas, a vida de Máslova foi desviada em função das ações de Nekhliúdov e ele, como num estalar de dedos, percebe o reflexo de sua irresponsabilidade. Essa transformação também reflete no que livro irá tratar dali em diante, inclusive em seu título e em diversas outras esferas. Num sentido prático, o choque pela qual passa Nekhliúdov é um lembrete da influência que decisões tomadas impensadamente podem desenvolver sobre outras pessoas. E se estas pessoas forem mulheres, "sem sobrenome", o reflexo gera um rótulo pela qual ela jamais irá libertar-se aos olhos externos.
Num sentido mais íntimo a Nekhliúdov, ficará bem perceptível ao leitor as semelhanças entre ele e Tolstói. Vários traços polêmicos da biografia do escritor são descarregados no protagonista. A sua "ressurreição" posterior, sua conversão, se não é tão radical quanto a vivida por Tolstói, atrai para si o mesmo tipo de incompreensão dentro de uma sociedade onde relações materiais sobrepõem-se a questões elementares como perdão, resiliência e humanismo. Isso abre a perspectiva de Tolstói para que ele critique através de Nekhliúdov não somente indivíduos, mas também instituições. A igreja, por exemplo, no seu sentido geral, é sensivelmente criticada pelos desvios entre aquilo que ela e a Bíblia pregam e o que a igreja realmente faz. Tais críticas não são apenas estruturais ou materiais, mas atingem também aspectos litúrgicos as quais carregam consigo muitas incongruências entre a mensagem trazida pelas Escrituras e a sua idealização prática. Estas desconformidades soam excessivamente atuais, como se pode imaginar.
O objeto institucional mais criticado por Tolstói, todavia, é o sistema carcerário russo do final do século XIX e suas ramificações espalhadas por todo o modus operandi do czarismo. Nekhliúdov é a "lupa", que disseca como funcionava a justiça num país gigantesco, profundamente desigual e que trazia em seu âmago hipocrisias mais gritantes que aquelas relacionadas às práticas religiosas supracitadas. Pessoas sem a menor condição moral, mas detentoras de nome, status social e influências familiares, travestiam-se de juízes, definidores dos rumos de vidas alheias. Estes pontos denotavam a corrupção em seu estado mais puro e endêmico (que nós brasileiros conhecemos como poucos...) existente no regime czarista, as quais, aliados a origem de muitos presos políticos que pipocam na narrativa, conferem ao texto de Ressurreição, em muitos momentos, um "grito dos oprimidos", defensores da derrubada da ordem política então dominante (o termo "socialismo" aparece algumas vezes na narrativa). Tal preocupação também se estende à questão da terra e sua distribuição a quem realmente poderia usufruir dela como sustento. Tolstói não chegou a ver a aplicação de boa parte destes princípios em seu país, com a Revolução Russa em 1917. Isso não chega a ser um desalento ao autor conhecido pelo seu pacifismo, já que o passar das décadas mostrou um aspecto nada humanista decorrente desse novo e excessivamente presente Estado. Em nome de um discurso de melhor distribuição de renda e universalização de oportunidades a todos, o então Estado Soviético seguia assassinando, premeditada ou indiretamente, seus próprios cidadãos.
As críticas ao sistema carcerário não são apenas direcionadas à participação do Estado na organização desse sistema. A trajetória de Nekhliúdov e Máslova se desenvolve entre vários outros condenados, inocentes ou não, a duras penas, como a de trabalhos forçados na Sibéria Oriental, região que fica distante cerca de seis mil quilômetros de Moscou. Esse trajeto, que era percorrido majoritariamente a pé pelos apenados, adquire uma importância social de destaque em Ressurreição, onde Tolstói questiona com um olhar humanista o real funcionamento desse tipo de punição mais drástica a criminosos. Fundamentalmente, o que acaba prevalecendo é o caráter de conflito: a sociedade não pune o criminoso, se vinga dele, privando-o do convívio social ou até mesmo da sua vida (penas de morte também poderiam ser aplicadas). O pilar da reclusão, como meio de recuperação do indivíduo, era totalmente ignorado. A forma com que este tema tão sensível é desenvolvido aqui lembra um pouco O Último dia de um Condenado, obra de Victor Hugo (1802-1885) lançada em 1829. Evidentemente que tentar adaptar esse olhar mais humanista para a realidade atual deve levar em conta a existência de uma série de questões e desafios sociais inexistentes no século XIX, mas não pode ser ignorada a maneira com que a sociedade em todos os tempos encarou e encara os desafios do cárcere. Deriva desse entendimento, inclusive, o desfecho do livro, que teoriza por meio das Sagradas Escrituras a solução para praticamente todos os males que a obra descreve.
Ressurreição é um romance que sintetiza vários aspectos do seu contexto temporal: é uma crítica à alta sociedade russa, às autoridades carcerárias e governamentais e joga aos holofotes uma série de contradições nestas e em outras instituições consideradas inexpugnáveis. O livro também condensa o processo de desmantelamento da consciência de Tolstói diante das hipocrisias e materialismos que ele passa a enxergar ao seu redor. Apesar de a relação entre Nekhliúdov e Máslova ser tratada num segundo plano em diversos momentos, ela ilustra as formas deturpadas e femininamente prejudiciais com as quais as relações entre homem rico e mulher pobre são tratadas pela sociedade. Traz, portanto, uma enormidade de temas inevitavelmente atuais, as quais oferecem um painel mais amplo a questões que o leitor pode até então considerar como perenes e intransponíveis em sua percepção.