Lasse_ 15/10/2023
Inspirado pela repressão ortodoxa a um grupo de Dukhobors, uma das muitas seitas cristãs russas que se oporam à ortodoxia católica da época dos tsares, Tolstói escreve Ressurreição com o propósito de auxiliar a emigração dos dissidentes. É importante situar que este romance é posterior ao episódio de iluminação espirital do autor, e portanto carrega uma carga moral nova que se apresenta como a linha principal da narrativa. Desde as primeiras páginas fica muito claro a imagem de um Tolstói escrevendo com uma raiva absoluta de uma sociedade hipócrita que se desvirtuou dos simples ensinamentos de Cristo.
Este romance também se propõe a ser uma espécie de enciclopédia, encompassando todas as esferas da vida russa, tal qual Guerra e Paz o foi. Mas aqui vemos tais esferas como defeituosas. Tolstói não poupa fôlego para enumerar todos os problemas da sociedade russa, e discute assuntos como a premente necessidade de uma reforma agrária em prol do proletário rural, a disfunção dos tribunais e do sistema carcerário, onde inocentes são jogados tanto por erros frequentes dos tribunais quanto por pressões políticas, e a hipocrisia da esfera religiosa, que venera símbolos antes da caridade, a qual deveria ser o pilar do catolicismo.
Mas talvez o que há de mais interessante aqui seja um aspecto psicológico que fica nas entrelinhas. O protagonista sofre uma ressurreição moral que pode se equiparar à do próprio Tolstói, a quem espanta que tudo esteja profundamente errado, mas que ninguém perceba ou pareça se importar. O ponto principal aqui é uma epifania. É somente a custo do próprio ego que Nekhliúdov pode renascer moralmente, mas o estopim ocorre quando ele se defronta com as consequências últimas de seus erros. Antes que isso aconteça, o protagonista encontra aprovação na sociedade que o circunda. Todas as pessoas parecem estar num estado similar de entorpecimento moral, compactuando com os abusos porque mostra-se que a realidade é assim mesmo.
Isto posto, o que Tolstói postula é algo como o bom selvagem, onde a sociedade é que corrompe o homem. A degradação moral vem quando o protagonista "para de acreditar em si e começa a acreditar nos outros", num processo longo de embotamento. A elevação, ao contrário, vem em despertares súbitos, cujo efeito deve ser cultivado conscientemente ao longo do tempo. Mas o fato é que a sociedade, com o sistema político vigente, incentiva o torpor moral em prol do prestígio e dos prazeres da carne, e assim, se cria um sistema onde "ninguém é culpado, mas pessoas foram assassinadas, e assassinadas, apesar de tudo, por aquelas mesmas pessoas que não são culpadas de tais mortes". Somente quando o caso se torna pessoal é que é possível que uma pessoa se dê conta de tais processos.
No mais, é importante lembrar que muitos dos problemas atacados no livro ainda se mantém como tais hoje, como a questão da reforma agrária. Problemas sistemáticos requerem soluções drásticas, revolucionárias, mas essa revolução deve começar com uma ressurreição pessoal para que se tenha uma clareza de propósito.