Lucas 09/06/2023
Fardas desbotadas: o começo do fim da ditadura militar
O terceiro livro da coleção escrita por Elio Gaspari (1944-) é o de caráter mais digressivo da série até aqui. Longe de isso ser um fator negativo, entretanto, mas A Ditadura Derrotada (2003), desde sua sinopse, dá a entender que seu foco é mais travado cronologicamente. Passa-se a sequência do tempo para um segundo plano: na sua coleção de obras sobre a ditadura, este é o primeiro livro da "subsérie" O Sacerdote e o Feiticeiro e aqui o foco é direcionado aos dois donos dessas alcunhas.
Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996) é o sacerdote. Gaúcho da cidade de Bento Gonçalves, descendente de alemães, ele foi o quarto presidente da ditadura militar, assumindo o governo através de uma eleição indireta em 1974. Geisel já havia aparecido nos volumes anteriores da série, especialmente quando foi chefe da Casa Militar do presidente Castello Branco (1897-1967). Gaspari aqui apresenta brevemente a origem de Geisel, sua infância pobre, carreira militar, a dramática morte do filho adolescente e outros detalhes que sedimentaram a imagem simultaneamente austera e discreta que Ernesto sempre prezou e pela qual ele ficou conhecido.
Se Geisel, apesar de ter governado o Brasil possui essa obscuridade, isso se acentua quando se fala em Golbery (pronuncia-se "GolberÍ") do Couto e Silva (1911-1987), o famigerado feiticeiro. Também gaúcho (da cidade de Rio Grande), ele foi um dos precursores da chamada Doutrina de Segurança Nacional, um compêndio de conceitos, manuais e outros artifícios ensinados aos militares brasileiros a partir da década de 50 (o que acabou sendo a semente "acadêmica" para o golpe militar de 1964).
Ao traçar duas breves biografias desses personagens, Elio volta ao passado e disserta sobre alguns elementos importantes para que o golpe de 1964 florescesse, o que é um ponto criativo dentro da narrativa geral da coleção. Ambos, Geisel e Golbery, faziam parte de um grupo de militares que levou Castello Branco à presidência em 1964, mas que acabou sucumbindo frente à linha dura, que defenestrou-o do cargo e conduziu Costa e Silva (1899-1969) e Emílio Médici (1905-1985) aos mandatos presidenciais conchavados posteriores. Isolados, vários militares não radicalizados (mas que não eram defensores da volta à normalidade, diga-se) formaram o grupo chamado de "fritadores de bolinhos": a estabilidade da carreira lhes garantia que continuassem no serviço militar, mesmo que em postos de trabalhos menos importantes e isso também trazia certa blindagem às confabulações desses quadros.
A chegada de Geisel ao poder representou um "aceno" de Médici a essa linha militar mais comedida. Seu raciocínio era claro: com o país "calmo", o "alemão" era o mais indicado. Apesar de ter participado ora como espectador privilegiado, ora de forma mais efetiva nas inúmeras ocasiões em que o Exército deu as caras na política brasileira de 1930 em diante, Geisel em 1973 era mais conhecido pelo seu papel como presidente da Petrobras, a qual vinha exercendo desde 1969. Como se pode imaginar, diante do período do milagre econômico, a maior empresa brasileira protagonizou parte desse sucesso, o que fez com Ernesto ficasse bem cotado nas cabeças do regime.
Já Golbery foi chutado do governo Castello Branco, refugiou-se em empregos privados e voltou à "ativa" com Ernesto Geisel, sendo ministro da Casa Civil deste. Desde as negociações anteriores à transmissão de cargo, Golbery do Couto e Silva, um homem racional, reservado, prolixo e engenhoso, assumiu sua verdadeira face: o principal alicerce intelectual do regime ditatorial. Ninguém infectou tanto o Exército com entendimento geopolítico, o que acabou sendo decisivo para a engrenagem ditatorial funcionar.
O governo de Geisel, que não é tratado integralmente por A Ditadura Derrotada (que vai apenas até o final de 1974, ainda nos primeiros meses da presidência de Ernesto), pode ser entendido como o epicentro do regime militar brasileiro. A passagem de Ernesto Geisel pelo poder vai desde o auge da perseguição política em seus primeiros anos (cujo fortalecimento vinha desde os primeiros meses de Médici) até os primeiros acenos à abertura política (a lei da anistia, por exemplo, promulgada por João Baptista Figueiredo (1918-1999), foi formatada na parte final do governo de Geisel). Este ponto pode ser um justificador da inegável maior atenção que Gaspari dispensa a este período, mas não é o único. Desde o primeiro volume da coleção, o autor menciona a importância do trabalho de Heitor Aquino Ferreira (1937-2022), a qual foi secretário tanto de Geisel quanto de Golbery. Do presidente, ficou praticamente toda a década de 1970 ao seu lado e Heitor escreveu diários destes períodos, as quais encheram dezessete cadernos escolares, além de gravações de encontros e centenas de bilhetes trocados entre ele e seus superiores (as gravações transcritas no livro geram momentos reveladores, como o de um capítulo chamado "Esse troço de matar", onde Geisel convida o general Dale Coutinho (1910-1974) para o Ministério do Exército). Além disso, enquanto Gaspari desenvolvia o trabalho de pesquisa para os livros, apenas dois presidentes da ditadura militar estavam vivos: o próprio Ernesto Geisel e seu sucessor, João Baptista Figueiredo. Destes, aparentemente Geisel se mostrou mais receptivo ao trabalho e concedeu inúmeras entrevistas ao autor. Ou seja, metodologicamente falando, esse terceiro volume é o que mais se debruça sobre fontes primárias (e inéditas) de pesquisa, o que torna a leitura mais aprofundada tematicamente falando e menos abrangente no sentido cronológico.
Apesar disso, o adjetivo "derrotada" do título poderia ter sido mais bem aprofundado. Isso porque em novembro de 1974 ocorreram eleições diretas legislativas, que renovaram as assembleias estaduais, a Câmara dos Deputados e um terço do Senado Federal. Com o fim do milagre econômico e a queda de medidas paliativas que vinham sendo tomadas pelo anterior ministro da Fazenda (Delfim Netto (1928-)), o início do governo Geisel foi marcado por arrochos salariais e piora do poder de compra dos brasileiros. Este ambiente, aliado a uma risível presunção governista, contribuiu para que a oposição, aglutinada no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) tivesse expressivas votações. Se antes o Congresso Nacional, com uma oposição diminuta e sufocada, era passivo diante das arbitrariedades do regime, o fortalecimento do MDB nas eleições em 1974 é um aspecto fundamental para o aumento das pressões em torno do fim da ditadura: a semente das Diretas Já de 1984 foi plantada dez anos antes, quando o partido fez 16 senadores das 22 vagas disponíveis e quase dobrou de tamanho na Câmara. Mas isso tudo não é devidamente pormenorizado por Gaspari, que se ocupa mais em descrever os primeiros meses do governo Geisel até mesmo em suas intimidades do que discorrer sobre as consequências destas derrotas legislativas, as quais abalaram a crença do regime em si mesmo.
Naquilo que se propõe, a obra de Gaspari têm a sua importância por descrever o penúltimo presidente do regime ditatorial. Adicionalmente, Ernesto Geisel foi um personagem único na galeria de presidentes brasileiros. Apesar da sua discrição, o militar tinha ideias pouco ortodoxas sobre o contexto sócio-político nacional (chocante uma análise pontual que ele faz sobre o povo nordestino) e internacional (chama a atenção a opinião de Geisel sobre Israel ou sobre Richard Nixon, presidente norte-americano da época e que sofreu impeachment) e uma crônica indecisão sobre os rumos do Brasil: se por um lado era contrário à linha dura, Geisel achava inconcebível que um povo tão pouco instruído quanto o brasileiro fosse capaz de escolher governantes eficazes. Ou seja, a democracia, para ele, só se tornava viável caso o povo que a exercesse tivesse noção da sua responsabilidade. Mas a ortodoxia de seu raciocínio não era capaz de ampliar esse dilema em busca de um caminho que priorizasse a voz e a participação do povo.
A Ditadura Derrotada é um livro excelente, com um ritmo bem diferente dos que o antecederam, mas capaz de manter um caráter informativo e isento (talvez um pouco menos isento aqui, já que além da supracitada pouca atenção dada à derrota governista nas eleições de 1974, o livro praticamente nada fala sobre as perseguições aos movimentos de resistência). Isoladamente, pode ser visto com ressalvas, mas no conjunto de sua coleção, é uma obra vital, que prepara o leitor para o começo do fim do regime, descrito nos dois últimos e posteriores volumes.