spoiler visualizarLelouch_ph 13/08/2024
Poderia a irreverência moral ser uma crítica eficaz?
Angeli é um cartunista brasileiro conhecido por seus personagens, e tiras, com temáticas irreverentes e despreocupadas com as problemáticas de sua época. Também é conhecido por ter sido o responsável por impulsionar indiretamente quadrinistas independentes brasileiros. Embora os problemas sejam reconhecidos e até mesmo citados. Se tornou tão grande que foram criadas animações, documentários e até mesmo um longa metragem sobre ele e um de seus personagens. No caso, o que disputa em popularidade com a personagem que quero explorar nesta resenha, o famoso Bob Cuspe. Tendo como características principais sua pele esverdeada, seus cuspes em qualquer um e qualquer situação e sua irreverência/revolta a autoridades e tudo que ferir sua liberdade.(Isso inclui seu criador.)
Rê Bordosa é dita por muitos como a obra prima de Angeli por ser, uma personagem única e genuinamente brasileira, um fruto de seu tempo e capturar a essência, desejos, medos e inseguranças da classe média brasileira com foco na paulista. Publicada na saudosa revista Chiclete com Banana entre 1984 e 1987 foi morta por seu criador em dezembro do ano final de suas publicações. Embora... De vez em quando surja algo publicado sobre ela para conhecermos um pouco mais da personagem, seja em peça teatral, em participação especial em animações de outros personagens de Angeli ou seja em uma publicação extra contando sobre algo que o autor acha que devemos saber sobre ela, mas nada em frente, sempre sobre seu passado.
As principais características dela são ser ninfomaníaca, alcoólatra, irreverente, um arrependimento constante de muitas coisas e a falta de esperança para si e os outros a fazendo descontar tudo em Vodka e outras bebidas dentro de sua banheira, que é onde está 90% do tempo. Existe uma dúvida constante sobre a sexualidade da personagem, mas segundo a mesma: "Meu negócio é homem. As mulheres que passaram por esta banheira foram por puro erro de cálculo.", dita pela própria em uma entrevista com outro personagem de Angeli, o jornalista Benevides Paixão. A personagem é usada constantemente para expor os medos e angústias da classe média, com a diferença que enquanto ela sofre e desconta na bebida e no vício em sexo, quem sente o mesmo que ela tem a oportunidade de continuar seguindo em frente e não se deixar ficar na mesma situação que ela chegou. Embora seja engraçado na maioria do tempo, vemos às vezes a personagem refletindo se ela não poderia começar a vida novamente, desistindo dessa vida de vadiagem e finalmente superar todas as dores que ela sente. Rê Bordosa tenta até mesmo ajuda profissional, embora ela apenas tente, pois não leva sua situação a sério o bastante para ser sincera. Às vezes, ela pensa se não seria mais simples se encontrasse um amor para cuidar dela e tirá-la dessa vida, e acredito que não tenha sido intenção de Angeli, fazendo referência a algo que quase todos sentimos. Um buraco no peito que só poderá ser resolvido, ao menos em nossas cabeças, com o calor de outra pessoa. Se houver alguém que possa se preocupar com nós mais do que nós mesmos e nos ajudar em nossas lutas, internas e externas, nossa vida será melhor. Mas a questão que fica é: Será que esse amor não pode vir de nós mesmos? Por que você precisa que outra pessoa aponte que você não está se cuidando? Por qual motivo você não pode resolver isso sozinho? Será que você quer um relacionamento ou um pai/mãe/pãe? Será que o problema é a falta de um amor ou a falta de amor próprio? Até mesmo a forma como Angeli a mata possui um sentido, mas prefiro que você leia e descubra sozinho.
Ao longo das tiras se percebe o quanto ela não sabe pra onde ir, e gostaria de ter seguido por outro caminho mas não conseguiu. Às vezes Angeli a usa para conscientizar jovens, principalmente quando a Aids virou o assunto do momento. Ele quebrou várias mentiras e informações erradas usando o seu humor ácido e irreverente, é um ótimo uso realmente. E é o único momento que a personagem está tentando se cuidar. Em uma das tiras ela nega se deitar com um homem extremamente rico por ele não usar camisinha na hora H, imagino o peso disso na época: "SE ATÉ ESSA 🤬 #$%!& LOCA SE NEGA, PQ VOCÊ DEIXA?".
Outra característica fascinante é a falta de medo de falar de assuntos tabu, como aborto que ele fala sem medo que ela já fez e que faria de novo, e faz. Ela tem medo de perder a vida que possui, mesmo não gostando dessa vida. Até mesmo o pesadelo que ela vive internamente é melhor que a mudança. Esse é maior medo de muitas pessoas, e ele usou o aborto como uma metáfora para o medo da mudança e de algo dar errado.
Rê Bordosa aparece sóbria duas vezes na obra inteira que é quando ela tenta se voltar para a fé e o mesmo problema de quando buscou ajuda profissional se expõe, ela não levou a sério a tentativa. Estava apenas tentando preencher esse buraco com outra coisa sem realmente desejar melhorar, apenas não queria sentir aquela dor. A outra situação é na sua morte, que Angeli explora com maestria e fala sobre relacionamentos que não afloram, mas sim controlam. Ao mesmo tempo que mostra que ela não se sente completa ainda.
Ao fim do livro temos um bônus, uma publicação extra em que Rê Bordosa escreve um diário, neste diário ela conversa muito sobre o que ela está sentindo e desejando talvez se tivesse sido tão sincera com o profissional quanto foi no diário, teria tido uma chance de sobreviver a está sociedade que tenta te engolir a cada dia de sua vida. É uma personagem fascinante que possui muito a ensinar e muito a evitar. Rê Bordosa é um bom exemplo do que não se tornar. Acho que por último vale ressaltar algo sobre ela, ela carrega a desconfiança do povão na política. E a sensação de muitos que presenciaram o fim da ditadura que o que mudou foi quem estava no poder e não o poder. Recomendo bastante essa leitura.