Os meus sentimentos

Os meus sentimentos Dulce Maria Cardoso




Resenhas - Os Meus Sentimentos


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ElisaCazorla 19/04/2020

O lado mais obscuro da existência
Não podemos mudar o passado, mas podemos contar a nossa versão sobre ele e essa versão que contarmos sobre o passado será a construção de toda uma vida e seus significados.
Adorei ler este livro! Adorei a construção da narrativa, adorei a linguagem, adorei os personagens e como conseguimos nos colocar na pele de cada um deles, muito embora seja um fluxo de consciência e só podemos contar a versão de uma das personagens, é possível sentir-se na pele dos outros personagens tão tristes e melancólicos. Tão solitários e cruéis.
Nesta história não há lugar sequer para um ponto final. Não existem parágrafos ou capítulos. Existem apenas vírgulas e todo o relato se alterna entre a primeira pessoa e frases dispersas, entre censuras e feridas repetidas até à exaustão - sem nem um ponto final!
Poderia ser um livro cansativo, mas é exatamente o contrário!
É um romance vertiginoso sobre a decadência física e moral de uma família que foi que vive entre a mentira e o silêncio. É também o relato autobiográfico de uma mulher atormentada, incapaz de sentir, de amar ou de esquecer o seu passado de agonia. Essa personagem narra sua história e se repete, como uma ladainha, que no dia seguinte tentará algo diferente, quem sabe amanhã farei diferente, talvez... até que, diante dos seus olhos, a cruel e talvez única verdade que temos sobre a vida: e se não houver amanhã?
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Johnny 15/02/2013

Descoberta
Dulce Maria Cardoso - Os meus sentimentos
Tinta-da-China 372 páginas

Este romance foi para mim uma descoberta surpreendente.
A autora, que é portuguesa e passou a infância na capital angolana, possui estilo literário bem peculiar. As sentenças são curtas, separadas por vírgulas, não há ponto final, parágrafo ou maiúsculas. Os sentimentos se despejam incontidos, acumulam como um líquido amargo que penetra devagar no corpo, um bitter que vai direto ao sangue e inebria o leitor. Os meus sentimentos, aqui, podem ser compreendidos em seu sentido literal, mas também representam a expressão de pesar, de condolências, que igualmente se utiliza em Portugal. O texto de Dulce Maria Cardoso faz lembrar de leve - o de seu conterrâneo José Saramago, porém ela nos oferece uma dose aterradora de lirismo e crueza. Sua eficiente fórmula de escrita acrescenta frases esparsas no meio dessa torrente de palavras: o curso da leitura é interrompido por lembranças faiscantes que criam associações mentais e iluminam a narrativa. Essas reminiscências constroem a essência da protagonista e parecem reforçar o ritmo aliterativo que caracteriza a nossa memória.
A história é narrada em primeira pessoa. Violeta, nome de flor que é também uma cor (por sinal, a cor de panos funestos), compõe um triste amarrado de sua vida a partir do momento em que se vê dependurada pelo cinto de segurança, de cabeça para baixo, num baldio de estrada, após um acidente de carro. Seus olhos se fixam no reflexo luminoso de uma gota presa ao vidro do para-brisas. Violeta não sente dor física, sequer sente o peso de sua abundante gordura, há um distanciamento tranquilo que faz emergir toda a dor verdadeira, a dor que não está na carne, que é parte de sua natureza psíquica e fruto amargo de seu passado.
Violeta se reconhece monstrenga em seu corpo exorbitante. Sua falta de amor próprio parece reduzida a uma espécie de cinismo sem esperanças. Quando era garota, entregava-se no escuro do cinema, deixava-se apalpar e apalpava o sexo dos meninos que faziam fila para ter sua chance de experimentar o prazer adolescente. Quando terminava o filme, os meninos riam-se dela, enquanto as outras garotas bonitas saíam de braços dados com os seus namorados. O sentimento de piedade que tem por si mesma já está gasto, também já se transfigurou em cinismo sem esperança, mistura-se com um desejo de punição.
Ela é uma vendedora de ceras para depilação, a melhor vendedora que existe, sabe tudo sobre o assunto. Costuma viajar para fazer seus contatos comerciais. Nas beiras de estradas, pratica a caça aos piores tipos que lhe aparecem nos estacionamentos de caminhões. Possui um estratagema de captura bem definido, finge que está perdida, procurando um caminho no mapa que assenta sobre os joelhos. Entre a oferta calculada de seu corpo e o negaceio de seu aspecto de puta barata, obtém satisfação de maneira sórdida e humilhante. A cena em que ela faz sexo com um caminhoneiro no chão de um banheiro público em uma noite chuvosa é terrível. O homem magro, bêbado, é apenas mais um em seu rosário de mutilações do espírito. A cópula acontece sem medo e sem amor, sobre o piso frio, incômodo, enquanto ela olha para uma mancha de umidade no teto e pensa no encontro que terá logo mais com suas clientes. Seu tempo não é aquele. Violeta é uma pedra que não permite que lhe brotem flores, as flores são tolices. Violeta conhece o amor de ouvir falar.
Seu tempo não é o tempo de sua vida. Para mostrar isso, a autora lança mão de uma cronologia que se liberta e vai tecendo um jogo de espelhos com as experiências da personagem. No restaurante indiano, por exemplo, último almoço que teve com a filha e o marido, a cena se alterna com o rebuliço de um salão de beleza que ali existiu no passado. Dora despreza a mãe, entre elas se trava um eterno combate, a luta dos que sabem se magoar. Violeta vê na filha o melhor pedaço de si - uma excelente adversária. É uma rival de quem exige um amor improvável. Enquanto Dora se mostra irritadiça, tem vergonha da mãe e anuncia que vai sair de casa, o pai põe água na fervura, sempre imparcial diante das lâminas agressivas atiradas de um lado para o outro. Ângelo, o marido, é um palhaço animador de eventos, um humorista sem talento. Suas piadas são motivo de galhofa, sua mente gira em uma órbita muito distante da realidade. Parênteses: os homens da história costumam ser bonecos inanimados. No tempo paralelo que visita a memória de Violeta, os pratos e talheres do restaurante, com a jovem em despedida de solteira na mesa ao lado, são substituídos pelas bacias pretas, alicates e bonecas com cabeça de sabão do antigo instituto de beleza. Celeste, a mãe conservadora de Violeta, a mãe moralista que sempre viu na filha uma enorme desilusão, frequentava o lugar e gostava de exibir seu francês très chic. Por entre os secadores de cabelo, as funcionárias do salão recolhiam as migalhas das verdades mais intimas que suas clientes partilhavam. Um mundo que foi varrido, passageiro como as modas. Corre uma dança das verdades interiores e do patético da vida no restaurante e no salão de beleza, e é nesses momentos que a coreografia traçada pela autora atinge expressão mais sublime, transbordante de poesia, encantadora.
Há um ponto do livro, pouco depois da metade, em que nos perguntamos: por que Violeta é assim tão dolorida, por que ela sente tanto desprezo pelas pessoas à sua volta, que desgraça a faz enxergar a todos com essa raiva cansada, que acontecimentos a transformaram nessa monstrenga capaz de nos infundir, ao mesmo tempo, repugnância e uma piedosa simpatia? Torcemos por ela, desejamos, seja lá por quais caminhos decida viver, que seja lavada dessa angústia que envolve sua alma como uma casca escura, grossa e mal cheirosa.
O pai de Violeta aparentemente enlouqueceu. Nas palavras da narradora, foi arrancado ao hábito da loucura. Vive enfurnado em seu viveiro de pássaros, de onde recolhe as aves que julga doentes e estala seus ossinhos entre os dedos para lhes roubar o céu definitivamente. O governo revolucionário assumiu o poder e a história de Baltazar, ligada à antiga ordem ditatorial, é motivo de recriminação política. Ângelo é seu filho não assumido de um romance extraconjugal, portanto é meio-irmão de Violeta. O palhaço, bufo da vingança, passava dias especado no fim da rua a odiar os membros da família do pai.
As injunções dessa tragédia familiar pesam como chumbo sobre o destino de todos. É dessa opressiva história familiar que Violeta pensa se livrar ao vender a casa dos velhos já mortos, um pai alienado e uma mãe que desmontou os alicerces de sua auto-estima, além da empregada, Maria da Guia, que contava sempre a mesma história de abandono de maneiras diferentes. Contudo, ninguém corrige o passado, quando nos pomos numa vida não sabemos responder por outra. E, no fim das contas, cada um ouve as histórias à sua maneira. Esse é o tom de encerramento do romance, com as recordações de Violeta alçando uma ponte para um futuro próximo, reafirmando que as histórias podem ser contadas e compreendidas de maneiras diferentes, mesmo que seja a mesma pessoa a animar suas personagens.


site: https://sites.google.com/view/literaturaemosaico
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Michel 30/12/2020

UMA HECATOMBE DE CONSCIÊNCIA
De todas as minhas manias de leitor, uma delas sustento um carinho especial: quando aprecio a leitura, acabo por desacelerar naturalmente. Não sei se por medo do término do prazer ou por introspecção. O fato é que o livro que encanta é sempre degustado lentamente por este leitor que vos escreve. E a obra aqui resenhada esteve diariamente comigo ao longo das últimas três semanas, numa leitura vagarosa e cheia de pausas para reflexões.

Cada vez mais apaixonado pela literatura portuguesa, conheci o trabalho de Dulce Maria Cardoso através de sua primeira obra CAMPO DE SANGUE (tem resenha aqui no blog). Comecei um pouco desconfiado, tive dificuldades para me familiarizar com expressões linguísticas usadas em Portugal, enfim, precisei de algumas páginas para descobrir essa peculiar escritora. Mas a cada página virada eu desacelerava, desacelerava... Até quase parar, tão deliciosa que foi a experiência.

OS MEUS SENTIMENTOS é a obra cujo conteúdo replica todo o brilhantismo narrativo que Dulce Maria já havia destilado em sua estreia. Este trabalho se eleva um pouco mais pela extensão, por explorar com maior profundidade a consciência da personagem que nos conta sua história, e o faz de ponta cabeça, o corpo avantajado preso ao cinto de segurança, enquanto ela observa os cacos que restaram do para-brisa e uma gota de chuva que se recusa a desprender da ponta do vidro. O impacto chocante foi o gatilho que submeteu pensamentos a serem revistos de forma diligente, porém, sem mascarar os excessos ou omitir as percepções adquiridas ao longo da vida da personagem, até chegar ali... No ponto crucial da fatalidade que despertou a autoanálise.

As lembranças da protagonista narradora vão moldando sua existência e iluminam lugares pouco explorados de seu interior; existência que fora drasticamente interrompida naquele tempo presente, cruel e imprevisto. Há instantes em que o cinismo descrito se mistura com a autopiedade, o que eleva as inconstâncias, mas sempre sobressaindo algo próximo a desesperança e o sentimento de inadequação da mulher chamada Violeta.

Coberta por um véu de sarcasmo que nem sempre soa proposital, a personagem replica as definições que as experiências, nem sempre evolutivas que viveu com outros seres humanos, lhe deram de forma quase impertinente, como se as vozes vociferantes não mais interferissem em sua estrutura. Desse modo, a mulher que tem nome de flor e que também é uma cor, a monstrenga, a aberração, vai externando seus pensamentos e lembranças, com uma crueza tão ímpar capaz de causar diferentes sentimentos no leitor.

Violeta não nos deixa respirar; incita o tempo inteiro uma aproximação, mostra seu incômodo que logo se transformará em nosso incomodo. Emoções como ódio se tornam palpáveis. E a partir desse instante, estamos presos a pensamentos até então impensados; travessias por fronteiras desconhecidas; submersos nessa hecatombe de consciência, o destino do leitor parece misturar-se ao da narradora... Um misto de lirismo e crueza, que por inserir-nos, exclui qualquer possibilidade de julgamento.

Trata-se de uma exegese cuja discrepância pode ser percebida como fundamento; é delicada e vigorosa, sutil e abundante, doce e azeda... Tão variável como somente pode ser a alma do ser humano. Portanto, eu fico a me perguntar se era Dulce Maria Cardoso a externar sua própria alma, ou se eram almas que usaram a autora para exprimir suas fragilidades e imprecisões... Se é que temos alma de fato.

Vale observar que essa autora não possui um estilo simples e que agrade a diferentes tipos de leitores. Talvez desagrade aos que apreciam fluidez narrativa ou climas instigantes que prenda a leitura por meio da expectativa. Essencialmente temos a imersão sem direção específica, que esmiúça muito os detalhes para fazer refletir.

Através de sua literatura, Dulce Maria Cardoso nos retira de zonas sombrias e escuras, onde nós pouco vemos e quase nada sentimos. Então, a autora nos remete a uma elevação perceptiva que somente a literatura é capaz de oferecer. Imbuídos dessa percepção, enxergamos o impossível: riscos ocasionais, objetos camuflados, gestos involuntários, coisas perdidas, sensações escapadiças. As obras dessa portuguesa genial desarranja nossa medíocre convicção; passamos daquele ponto crítico no qual a maior parte da cegueira coletiva se encerra, como se o universo fosse feito de margens alcançáveis. Então Dulce nos faz mergulhar mais profundo, porque depois de um abismo sabe-se que haverá outro, e mais outro... Sua literatura é uma viagem sem lugar seguro, então você despenca.

E como eu despenquei!

OS MEUS SENTIMENTOS foi o livro que deixei para ler no final desse ano, porque era a obra que mais desejava ler. Sim, eis outra mania de leitor que costumo me permitir: deixar o melhor para o final, como quando se deixa a carne no prato para ser degustada no finzinho. Prolongar a expectativa é um gostoso jeito de esperar pelo melhor livro. Nem sempre dá certo, vez ou outra a espera se torna maior do que a própria leitura. Felizmente esse não foi o caso, e termino 2020 embevecido de prazer, entorpecido pela beleza trágica de Dulce Maria, que sabe como arrancar camadas de seus personagens de modo a nos mostrar as vísceras que, a cada pedaço tirado se apresenta ainda mais imprecisa, imperfeita, e por isso mesmo, amplamente humana.

2020 foi um ano de boas leituras, ótimas descobertas, alguns livros nem tão bons assim, mas no geral, tive mais prazer do que enfado. Oportuno momento esse, cujo isolamento da pandemia serviu para incrementar os horários de leitura. Quero agora desenvolver um novo habito de leitor apaixonado: o de revisitar os livros amados, talvez um desafio menos simples de ser alcançados, pois diante desse universo tão vasto que é a literatura, quase não sobra tempo para releituras... Porém eu sei que, cedo ou tarde, acabo retornando aos grandes mestres, para reler ou para descobrir mais de suas obras. E Dulce Maria Cardoso está indiscutivelmente inserida neste seleto grupo.

site: outras resenhas: http://dimensaoreluzente.blogspot.com/
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arlete.augusto.1 30/12/2023

Para refletir
Adoro essa autora e há tempos queria esse livro, que estava esgotado. Não é o melhor dela (já li todos), mas é muito bom.
A autora nos leva a uma jornada de reflexão sobre a vida da personagem, enquanto a mesma espera o resgate após um acidente de carro.
Escrito em fluxo de consciência é um livro dinâmico.
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