Mara Vanessa Torres 22/09/2020
Uma sociedade em estado de desintegração em "O psicopata americano", de Bret Easton Ellis
Garimpando na internet uma frase de efeito que seja mais forte do que a famigerada “People use masks” (Pessoas usam máscaras), achei duas sentenças ainda mais impactantes. A primeira delas é do escritor canadense André Berthiaume, que diz: “We all wear masks, and the time comes when we cannot remove them without removing some of our own skin” (Nós todos usamos máscaras, e chega o momento quando não podemos removê-las sem remover parte da nossa própria pele). A segunda máxima vem de Don Draper, personagem da série Mad Men, cuja interpretação ficou a cargo do ator Jon Hamm: “People tell you who they are, but we ignore it because we want them to be who we want them to be” (As pessoas contam quem elas são, mas nós o ignoramos porque nós queremos que elas sejam quem nós queremos que elas sejam).
E antes que você me pergunte como o tema “máscara social” pode estar relacionado com tudo isso, vou lembrando logo que as coordenadas foram dadas pelas nossas tataravós, com suas fábulas e lendas. Sabe aquela história de “não confiar nas aparências” lida na escolinha com o nome de “O gato, o galo e o ratinho”? Foi o primeiro passo para chegar até o sanguinolento “O Psicopata Americano” (original American Psycho – 2011), obra barra-pesada do norte-americano Bret Easton Ellis.
A narrativa e o fluxo de consciência se misturam para fazer emergir Patrick Bateman, yuppie, geração anos 80, jovem, bem sucedido financeiramente, mentalmente desumano e espiritualmente vazio. Patrick trabalha no “final do arco-íris” conhecido como Wall Street e incorpora a futilidade que tanto caracteriza os jovens profissionais urbanos, onde a aparência conta mais do que a própria individualidade, as festas são regadas à cocaína, mulheres são meros objetos sexuais acéfalos (fato que rendeu a Bret E. Ellis uma saraivada de críticas por parte de grupos feministas – e com fundamento, é preciso que se diga), dinheiro e poder são as únicas perspectivas de vida e ninguém, absolutamente ninguém, se reconhece. Todos esses fatos são uma grande rede de conexões com uma função estarrecedora: mostrar o processo de bestialização humana. Isso mesmo: Patrick Bateman, o jovem bem sucedido, bonito, herdeiro de fortunas e executivo no coração das finanças mundiais é, na verdade, uma farsa, uma máscara, um protótipo, um hospedeiro para um parasita maior e sem proporções, algo que está fora do que entendemos por humano e que se aproxima das bestas-feras.
Patrick mata, tortura, mutila, retalha, cozinha e devora. A sequência de imagens formadas à partir da narrativa são de embrulhar o estômago, pois, de excelente crítico musical amante de Phil Collins, Whitney Houston, Genesis, Talking Heads e Huey Lewis and The News, o comedor de tripas é um sádico de primeira categoria, onde torturar e aniquilar exercem atrativos infinitamente superiores ao de matar. Mas, ao contrário do que se pode pensar em um primeiro momento, o livro não está aí para falar de assassinatos em série, carnificinas ou açougues humanos. Indo de encontro ao que diz a resenha veiculada na bula gigante “1.001 livros para ler antes de morrer” -percepção totalmente insubstancial -, o Psicopata Americano não é “acima de tudo um livro feio”, com cenas de violência sem sentido e descrições enfadonhas de roupas e produtos de grife. É muito mais do que isso.
Bret Easton Ellis arremessa o facão na sociedade americana dos anos 80, que ele entendia como uma juventude vazia, consumista, materialista, pobre de ideais (qualquer conexão com a realidade atual é mera coincidência). As únicas coisas que importavam eram os lugares caros, as badalações alucinógenas seguidas de sexo desenfreado com completos desconhecidos e pessoas que não são pessoas: são máquinas de reproduzir notas e cotações na bolsa. As descrições exageradas em cada produto mostram o que era a vida de sujeitos como Patrick, que só enxergavam as roupas e bugigangas que se podia ostentar. Não interessava se era Paul, Tim, Richard, Marcus… O que importava era o que o sujeito estava usando, que mulher “boazuda, tesuda e tesaozinho” o acompanhava, o que ela estava usando e de que conta ele cuidava (qual era sua posição no mercado de trabalho). Tudo se banaliza, se aniquila, se usa, joga fora ou se destrói. “And as things fell apart/Nobody paid much attention” (Enquanto as coisas se desintegravam, ninguém prestava muita atenção), é o que diz o Talking Heads (banda preferida de Patrick) na música “(Nothing But) Flowers”. E assim eram os yuppies dos anos 1980, viciados em si mesmos.
As mortes e violências cometidas por Patrick Bateman não escolhem vítimas: de mulheres com que ele se relaciona a crianças em visita ao zoológico, mendigos, trabalhadores e até mesmo colegas de profissão, como foi com Paul Owen, o cara que cuidava da conta Fisher (uma contaça, pelo visto). A inveja é o tipo de sentimento motivador nutrido por Patrick, cegando-o e enchendo-o de fúria, de ânsia assassina. A clássica cena dos cartões de visitas, com cada qual expondo o seu, esnobando-se mutuamente e competindo em detalhes ínfimos, como a escolha da cor do papel, da fonte, do material, são indicativos de como essa “yuppada” toda estava mal, muito mal.
Em matéria de relacionamentos, tudo não passa de sexo. Bateman mantém algo como “aparência” com uma dondoca chamada Evelyn, que o trai com seu “amigo de aparências” Tim Price; Patrick também é amante da viciada em lítio Courtney, que por sua vez é noiva de Luis Carruthers, que por conta de um mal entendido acaba se envolvendo em outro mal entendido ainda maior com o psicopata de Wall Street. Bateman também é viciado em filmes pornôs, cenas de sexo selvagem e massacre de prostitutas, que contrata para satisfazer suas necessidades animalescas para, logo depois, torturar e matar.
O livro é cercado por momentos insanos, onde o fluxo de consciência de Patrick dá intensidade marcante, caracterizada por mostrar o que está por trás da máscara, o que se faz “pelas sombras”. Nas cenas que se encaminham para o final, quando Patrick já está tão alucinado que nada faz efeito – o sujeito se entope de remédios do tipo Valium e Xanax -, seu nível de crueldade atinge patamares alucinantes: ele começa a não conseguir conter seu instinto assassino, outrora noturno, e passa a cometer toda espécie de atrocidades à luz do dia.
A crítica que o autor Bret E. Ellis faz é tão contundente que pode ser notada através das falas do psicopata-narrador que, muitas vezes, comenta com pessoas diferentes e em ocasiões diversas que ele é um assassino, homicida sem controle. Mas, como diz a música do Talking Heads: “ninguém prestava muita atenção”. Assassinatos são cometidos sem sentimento de culpa, a continuação dos crimes é inspirada pela impunidade, as pessoas são ocas, apartamentos guardam corpos em estado de decomposição que são “desovados” para purificar o local e passar para o próximo comprador, flores e purificadores de ar escondem o odor de morte, falta de reconhecimento faz o Miguel se passar por João, como já foi dito… Todos esses fatores formam a teia de podridão e superficialidade que o norte-americano Bret Easton Ellis tentou, ao seu modo, criticar e chamar a atenção.
A obra enfrentou severos rechaçamentos, editoras cancelaram e renegaram sua edição, grupos protestaram e escritores precisaram sair em defesa da liberdade de expressão para que o livro fosse publicado, o que aconteceu em 1991. No ano de 2000, a história foi levada ao cinema com o ator Christian Bale no papel de Patrick Bateman. Não deixa de ser uma versão interessante, mas muito – MUITO – longe da loucura que é o livro. Foram feitas adaptações, com a permissão da licença poética e que não chega a alterar os fatos, mas deixa muito a desejar. Bale personifica o psicopata muito bem, sem maiores ressalvas, mas a película não representa a real tensão que você só encontra nas linhas do original. Seria interessante se o longa-metragem descortinasse a crueldade como um pano de fundo para a real insanidade dos que beberam no vazio yuppista da década de 1980. O Psicopata Americano é, além de um thriller ou slasher, um filme sobre desintegração, vazio, crenças perdidas, sangue derramado e existência banalizada.
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