Paulo Silas 23/12/2018Como adianta o autor no seu prefácio, "Aurora" é o resultado de um empreendimento que, para que pudesse ser estabelecido, teve como desafio a descida até as profundidades da confiança humana na questão da moral. O terreno sólido dos costumes, que institui a moral, é quebrantado pelo penetrar do filósofo em seu âmago, a fim de examinar a fonte, a base, a origem e as razões pelas quais a crença na moral (enquanto tal) permanece inabalável na humanidade. Chacoalhar esse terreno, sólido apenas na aparência, derrubando seus alicerces, destruindo suas construções, desmistificando suas crenças, inquietando-se com o fato de o trilhar permanecer sempre igual, sem se dar conta de que quando tudo vem abaixo o que se faz é meramente colocar a mesma coisa, mais uma vez, naquele mesmo lugar, é a intenção da filosofia de Nietzsche aqui posta. O início do martelar aqui está. Se a imersão no problema e a exposição da nova filosofia estão mais bem explicitadas e construídas nas obras seguintes do autor, em "Aurora" já se tem os passos primevos disso - pelo menos a partir da ideia de poder que resultará posteriormente na vontade de poder nietzschiana.
Reflexões sobre os preconceitos morais. Tal como anuncia o subtítulo da obra, é disso que se trata. Dividido em cinco livros, "Aurora" questiona o estabelecimento da moral, o guiar-se pela crença, o pensar a partir dela e como tudo isso condiciona, de uma única maneira, o pensar, o agir e o trilhar. Há a ausência na humanidade de livres-agentes e livres-pensadores, que questionem a autoridade da moral, que a repensem, que reflitam sobre suas razões, sobre o seu berço - a fim de compreender o atual, o presente, e se assim mesmo é ou deveria ser. Nietzsche desempenha esse papel a contento enquanto clama e alerta para a necessidade desse novo pensar e as consequências disso. Diz o filósofo que "todos os que derruíram a lei moral estabelecida foram sempre considerados como homens maus" (aforismo 20), mas que quando a nova lei, a mudança, foi aceita, transformou-se o que se entendia e dizia sobre o novo - e é disso que a história trataria quase que exclusivamente: desses homens maus que passaram depois a ser chamados de homens bons. E é justamente aí que reside o efeito da moral: dizendo-se o que é o bom e o mau, define-se o que é passível de aceitação, o que se é autorizado, o que se pode fazer e pensar. Relegados, proibidos, execrados, fica tudo aquilo que não passa pelo filtro da moral estabelecida. É diante disso que se diz que "sob o império da moralidade dos costumes o homem desaprecia primeiro as causas, depois os efeitos e, por último, a realidade, e relaciona todos os seus sentimentos elevados [...] a um mundo imaginário, ao tal chamado mundo superior" (aforismo 33). Assim, acabam "os instintos transformados pelos juízos morais" (aforismo 38), condicionando o trilhar da humanidade num único direcionamento - irrefletido, ao juízo de Nietzsche.
A descida até as profundezas realizada pelo filósofo resulta em "Aurora", onde o questionamento, por meio de aforismos, é constante. É a filosofia nietzschiana a todo vapor, em que pese ainda não tão "martelante" como se verá nas obras posteriores, mas que ainda nem por isso deixa de ser ácida por sua crítica contundente. Como aponta o autor como sendo digno de reflexão no aforismo 101, "aceitar uma crença simplesmente porque é costume aceitá-la é má-fé, covardia, preguiça. A má-fé, a covardia, a preguiça não seriam a primeira condição da moral?". É a isso, dentre tantos outros questionamentos filosóficos, que Nietzsche busca, com êxito, explorar em "Aurora". A obra, portanto, é um espinhoso convite para se (re)pensar e questionar a moral.