Fabrício Cardoso 19/11/2024
Num país assim, poucas coisas são tão férteis quanto o medo.
O que João do Rio faz quando sai pelas ruas da cidade ainda convulsionada pelo golpe militar (sempre eles) da proclamação da República é uma aula de observação, uma rara capacidade de capturar o mundo com os cinco sentidos. João do Rio definia-se como um vagabundo no sentido mais cru da etimologia: aquele que vagueia por deleite. Nessas andanças, lançou um olhar àqueles que, historicamente, são tratados como adorno da paisagem onde só a grana define a subjetividade. Raramente nos importamos com os sentimentos de quem lava as privadas onde fisiologicamente nos aliviamos. Quando mais silenciosos forem, tanto melhor. João do Rio contrariou isso.
Claro, o fez sob as condições de temperatura e pressão do seu tempo. São constrangedoras as passagens plenas de machismo e racismo. Dele, aproveitei a habilidade verter cenários em palavras para ver, de soslaio, aquilo que na virada do século passado não merecia atenção. Foi um exercício tão triste quanto revelador.
Quando foi a um presídio, assim descreveu o desconforto das pessoas com a truculência dos guardas carcerários. “Percebe-se o terror das pessoas importantes e o desejo secreto de apedrejá-las, essa mistura antagônica que faz o respeito da ralé”. Aqui lembrei do historiador Luiz Antônio Simas, que revisou a assinou o prefácio dessa edição. Quem fica recomendando enfrentamento de peito aberto é o burguês, porque terceiriza a treta para a polícia. O malandro sabe que só encontra uma cota de paz quando se esgueira pelos vácuos da opressão.
Já dentro das galerias da penitenciária, onde detentos majoritariamente pretos agonizavam em cubículos insalubres, fez uma observação que serve de argumento a favor do abolicionismo penal. “Rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas”. Hoje seria chamado de comunista.
Mas o que mais me atordoou foi ter conhecido Olívia. Descrita por João do Rio com crueldade - pequena, feia, magra, olheirenta -, era uma “criaturinha de quinze anos e parece ter mil”. Hoje diriam que Olívia não se esforçou, mas aquele jovem na nossa jovem república cumpria pena na cadeia feminina por infanticídio. “Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros”, sugere João do Rio. “Tudo quanto se lhe perguntar sobre seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar”, completou. Olívia tinha 15 anos. Ainda bem que tudo mudou e hoje ninguém mais obriga crianças a parir…
De todo esse mergulho pela degradação imposta pelo Brasil à maioria de seus filhos, João do Rio interpretou as inclinações políticas mirando as tatuagens. “Pelo número de coroas que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista”.
Se você impõe a violência como padrão, qualquer mudança sempre vai parecer para pior. Num país assim, poucas coisas são tão férteis quanto o medo.