Lista de Livros 12/01/2019
Dislates, mistificações e delírios
Não é tarefa particularmente fácil defender a concentração de renda, defender as mordomias, prerrogativas, privilégios e bonanças do 1%.
E é exatamente a esta tarefa que toda a obra de Friedrich A. Hayek se propõe, um lixo tóxico que não é levado em conta por nenhum pesquisador que tenha o mínimo de sensibilidade social e senso de solidariedade com seus semelhantes.
Estas são asserções, frise-se, que também cabem perfeitamente a Von Mises, Milton Friedman e assemelhados.
Da mesma maneira que outros teóricos neoliberais, Hayek tem todo um esmero em esconder, em camuflar seus interesses de classe enquanto finge defender a liberdade. E faz isto distorcendo-a, manipulando-a, eivando-a, de modo que a liberdade se torne exatamente no inverso do que deveria ser.
Matthew Arnold certa vez bem pontuou que “a liberdade é um cavalo muito bom de cavalgar – mas de cavalgar para ir a algum lugar”.
Na verdade, para os neoliberais, “liberdade” é a liberdade de explorar o próximo. É a esta distopia precária e estapafúrdia que eles deformam o conceito.
Por essas e outras os neoliberais não tem nenhum pudor, não coram, não observam contradição alguma entre sua “defesa da liberdade” e o fato de o país pioneiro na aplicação de seus ideais socioeconômicos tenha sido exatamente uma ditadura sanguinária – o regime corrupto e bárbaro do general Pinochet, no Chile.
Ou seja, a tal defesa apaixonada da liberdade feita pelos neoliberais é uma falácia que não resiste ao menor teste histórico. A aplicação de sua ideologia se deu exatamente em um regime tirânico e atroz – e os próprios neoliberais, à época, afirmaram que o regime chileno (ditatorial) facilitaria a aplicação das medidas socioeconômicas que preconizavam.
Natural.
Como eram medidas que atentavam contra o povo, a ideologia neoliberal poderia ser implementada muito mais facilmente em um regime em que a população estivesse censurada e amordaçada, impedida de protestar e de votar.
Hoje, 91% dos aposentados chilenos recebe menos de 760 reais por mês e, por conta disso, o índice de suicídio entre idosos é absolutamente desproporcional em relação a outros países. Esta é só uma das contas que o regime neoliberal acarretou, legando problemas estruturais de difícil solução e à sua população idosa uma condição de vida desumana (por conta da precariedade remuneratória, basicamente os chilenos não se aposentam).
Além do conceito da liberdade, são tantas as mistificações que Hayek promove, que fica difícil de selecionar as principais.
Escolhamos mais uma.
A meritocracia* se baseia na ideia de que as pessoas devem ser recompensadas por seu esforço individual, por sua eficiência, por suas aptidões e dedicação ao longo de suas vidas.
Naturalmente, para que a meritocracia faça sentido, qualquer benefício irregular dado a uma pessoa corrompe o conceito.
Por exemplo, imagine-se uma corrida de 200 metros rasos. Por conta do esforço, dedicação, empenho etc., um competidor irá ganhar. Entretanto, se um corredor sai na frente dos demais, naturalmente, não houve mérito algum – ele só ganhou porque saiu na frente, burlando a disputa.
Desta maneira, qualquer pessoa que seja consequente, que não seja um rematado hipócrita, ao defender o conceito de meritocracia, impreterivelmente deve defender que a educação seja provida em iguais condições a todos (o que obviamente só poderá ser fornecido pelo poder público) e, tão importante quanto, não poderá defender nenhum tipo de herança – direta ou indireta.
Se se defende o mérito, o esforço individual, então que cada pessoa construa sua trajetória, trabalhe e vença na vida por seus próprios meios – e não porque o papaizinho lhe legou uma fortuna, cargos ou até mesmo uma empresa.
Desta maneira, o conceito de meritocracia é absolutamente antagônico ao conceito de ensino privado e também ao de herança – reiterando, não há mérito quando se parte em uma corrida na frente dos outros.
Entretanto, por óbvio, como não há absolutamente nenhuma coerência, nenhum rigor teórico nos escritos dos neoliberais, Hayek afirma:
“Seria irracional negar que uma sociedade poderá criar uma ELITE MELHOR se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar." (destaque meu)
São estas pessoas que ainda têm a desfaçatez de discursarem sobre mérito e esforço individual.
É simplesmente inacreditável.
Mas como Hayek mesmo diz de maneira despudorada, seu intuito é de criar uma ELITE MELHOR – seu intuito não é criar uma sociedade mais justa e equânime, uma sociedade de classe média, onde todos tenham direitos mínimos garantidos, com educação, saúde, moradia, cultura etc., com uma qualidade mínima que permita uma vida saudável. Longe disso.
A luta de Hayek, como a de todos os neoliberais, é pelo 1%. E que os outros 99% comam as migalhas que restarem.
Convém pontuar mais uma coisa. Alfred Nobel, inventor da dinamite, foi o criador do prêmio que leva seu nome, dado a pessoas ou instituições que tenham contribuído de maneira emblemática para a humanidade. Os prêmios, divididos em cinco categorias (física, fisiologia ou medicina, literatura, paz e química), foram concedidos pela primeira vez em 1901.
Em 1968 o Sveriges Riksbank, Banco Central da Suécia, estabeleceu um prêmio em homenagem ao tricentenário da instituição, dando uma quantia financeira elevada à Fundação Nobel. Em contrapartida, simplesmente inventou um "prêmio Nobel" na categoria de Economia – ao qual este próprio BC atribuiria um ganhador.
E desde então, sendo escolhido por membros do mercado financeiro que habitualmente compõem os BC’s (aliás, corrupção flagrante que é deliberadamente ignorada pelos meios jurídicos), basicamente congratulou economistas neoliberais.
A escolha de Hayek é particularmente simbólica.
Em uma das raras exceções, o "prêmio Nobel" daquele ano (1974) seria dado a Gunnar Myrdal, economista socialdemocrata que, dentre outras pesquisas, estudou a injusta condição socioeconômica dos negros nos Estados Unidos.
O Departamento de Estado norte-americano ficou furioso com a indicação de um economista que provava ao mundo com seus estudos a desigualdade reinante dentro dos EUA (lembremos que a época vivida era a da Guerra Fria e propaganda contrária era muito mal vista).
De maneira furibunda, através de pressão diplomática fortíssima, o Departamento de Estado CONSTRANGEU o BC sueco a indicar um economista que rezasse a cartilha norte-americana. O BC sueco acabou cedendo, e o economista indicado pelos EUA foi o Hayek. Entretanto, como não era possível retirar o prêmio de Gunnar Myrdal (ele já havia sido escolhido), o BC sueco, de maneira salomônica, dividiu o prêmio.
Desta maneira, Hayek é laureado por um “Nobel” que não é Nobel e, pior ainda, só o foi por pressão conservadora do governo dos EUA para esconder as desigualdades sociais que acometiam (e acometem) os afrodescendentes americanos.
Um escândalo.
*: O conceito de meritocracia está longe de ser defendido pelos neoliberais. Todavia, mesmo em seu estado puro, ele tem contradições graves.
Louis Blanc, na obra “Organização do trabalho” (1839), afirma: “Chegará, assim, o dia, por exemplo, em que será reconhecido que, quem recebeu de Deus mais força ou mais inteligência, deve mais a seus semelhantes. Será então um gênio, constatando, o que é digno dele, seu legítimo poder não pela importância do tributo que imporá à sociedade, mas pela grandeza dos serviços que lhe prestará. Porque não é para a desigualdade de direitos que a desigualdade de talentos deve conduzir, e sim para a desigualdade de deveres.”
Da mesma maneira, John Rawls, em “Uma Teoria da Justiça”, afirma que se uma pessoa por ventura nasceu com dotes especiais e, não tendo mérito nisto (ela simplesmente nasceu com tais dons), ela deve desenvolvê-los em prol da sociedade:
“Os que foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes. Os naturalmente favorecidos não se devem beneficiar simplesmente porque são mais bem-dotados, mas apenas para cobrir os custos de treinamento e educação e para usar os seus dotes de maneiras que ajudem também os menos favorecidos. Ninguém merece a maior capacidade natural que tem, nem um ponto de partida mais favorável na sociedade. Mas, é claro, isso não é motivo para ignorar essas distinções, muito menos para eliminá-las. Em vez disso, a estrutura básica pode ser ordenada de modo que as contingências trabalhem para o bem dos menos favorecidos. Assim somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórias em troca.”
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