spoiler visualizarBrujo 24/07/2024
O EREMITA CÓSMICO
Há tempos que a ficção científica me facina, seja pela inteligências de seus textos, pelo poder de extrapolação da tecnologia atual e suas implicações na sociedade humana ou pela genialidade de certos conceitos. Mas o aspecto mais delicado e - talvez - o ponto fraco desse nicho literário é a retratação de seres alienígenas. Se pararmos pra pensar, grande parte das histórias de sci-fi criam alienígenas de aspecto puramente humanoide e relacionavel com a nossa própria biologia, talvez com membros a mais, outros sentidos e etc. Mas é justamente pra isso que de tempos em tempos aparecem gênios como o polonês Stanis?aw Lem, para quebrar com os paradigmas.
Em 1961, com o lançamento do livro "Solaris", Lem propõe a existência de um planeta banhado quase que completamente por um oceano possivelmente vivo e inteligente. Nas palavras do proprio autor: ?Eu queria criar a visão de um encontro humano com algo que certamente existe, de uma maneira poderosa, mas que não pode ser reduzida a conceitos, ideias ou imagens humanas?
E imaginem que, na tentativa de contato com tal organismo, o ser humano encontra... a si mesmo!
A premissa é simples: o psicólogo Kris Kelvin é enviado para a base de pesquisa localizada em Solaris mas, chegando lá, ele percebe que o clima está sinistro: o local está em completa desordem e nenhum dos 3 cientistas presentes na estação vai recebê-lo. Ele encontra o primeiro cientista, Snaut, com indícios de desequilíbrio mental, mal conseguindo concatenar suas falas. Ele avisa à Kris que Gibarian, outro cientistista que esperava encontrar, cometeu suicídio pouco tempo antes de sua chegada. Snaut também adverte Kris que há somente três pessoas na estação e que, se ele encontrasse outra pessoa, que ele não surtasse. O último cientista, Sartorius, está trancado em sua sala e quando Kris consegue falar com o mesmo, ele escuta uma voz de criança na sala. Como uma criança estaria naquele local?
Ao melhor estilo Lovecraftiano, nós acompanhamos a sanidade de Kris se esvair a partir do momento que sua esposa aparece na estação. Mas ela havia cometido suicídio anos antes!
Um ponto interessante para ressaltar é o clima psicodélico/ onírico conferido ao ambiente pelos dois sóis que banham Solaris, pintando o ambiente com tons de vermelho e violeta. Neste sentido, Solaris possui similaridade com "Viagem para Arcturus": os dois sóis, o clima onírico e a metáfora de usar um planeta para falar da mente humana. E é disso que a camada abaixo da superfície da história trata: uma forma de falar de fato das limitações da mente humana e da nossa inabilidade de nos comunicar com seres diferentes.
Conforme o decorrer da história, o mistério vai ficando em segundo plano, para que o autor trabalhe a construção do "personagem principal" - o oceano de Solaris - através da descrição da "Solaristica", ciência criada para estudo do planeta; mas para mim, o mais marcante foram as discussões sobre culpa, depressão, problemas mentais diversos (o próprio oceano é uma alusão bem direta ao cérebro; e o protagonista ser um psicólogo nao parece ter sido uma escolha ao acaso), chegando à discussão sobre o conceito de Deus. O Oceano seria uma divindade (ou um proto-Deus)? O Oceano estaria punindo os habitantes da base ou simplesmente tentando se comunicar com eles? São tantas discussões interessantes que a história acaba por exercer um poder hipnótico no leitor. Foi assim comigo, ao menos.
Tenho que abrir um parênteses aqui, para falar do Dr. Kris Kelvin: a forma como seus traumas e sua personalidade são trabalhados no livro foi fantástica. Sua história com sua esposa Harey, a forma trágica como esta se suicidou por culpa de uma omissão de Kris... E ver este trauma se repetindo na base foi doloroso: em um primeiro momento, ele se livra da aparição da esposa colocando-a em um módulo espacial e mandando a mesma para o espaço (e no passado ele a abandonou em um momento difícil). Da segunda vez que ela volta, ela mesma tenta tirar a própria vida bebendo oxigênio líquido, sendo que a Harey original havia injetado veneno no próprio corpo... Foi um baita lopping de sofrimento para este pobre psicólogo.
Preciso também falar de Harey (sua projeção, no caso)... de como ela vai se humanizando aos poucos, vê-la percebendo que não era humana e sofrendo com isso, até o seu derradeiro fim... foi uma jornada de partir o coração!
Por fim, mas não menos importante, tenho que comentar sobre a adaptação cinematográfica dessa obra (uma delas...), o filme de 1972 dirigido por Andrei Tarkovsky. Apesar de Lem não ter gostado (nem o Tarkovsky gostou, eu acho), devo dizer que é uma obra de arte. O diretor tomou algumas liberdades, é claro (acrescentando um começo e um fim diferentes), além de ter focado menos no oceano e mais no relacionamento de Kris e Harey mas, independente disso, ele é uma obra única, com destaque para a atuação de Natalya Bondarchuk como Harey. É até bom que livro e filme sejam relativamente diferentes, pois uma experiência acaba engrandecendo e completando a outra. Ou seja, tanto livro quanto filme são experiências únicas, capazes de invocar as mais profundas reflexões e discussões - eu assisti ao filme com a minha grande amiga Jaque e ficamos viajando nas interpretações na madrugada!
Em suma, ignorem algumas resenhas preguiçosas que podem ser encontradas aqui no Skoob sobre este livro fantástico e embarquem nessa jornada soturna!!
TS: Katatonia - Tonight's Decision (1999)