Brenda @caminhanteliterario 30/10/2024Meu TOC não me deixou começar a Cosmere por outra obra, e muito menos em ebook. Então, tive a brilhante ideia de iniciar minha primeira leitura em inglês justamente com uma alta fantasia de 600 páginas. E que experiência foi essa! Nunca levei tanto tempo para terminar um livro – foram 4 meses completos e uma imensidão de vocabulário novo aprendido. Acredito que, se não tivesse lido em inglês, talvez teria considerado a história um pouco fraca, mas desfrutar dela de forma tão lenta e desafiadora fez com que eu me apegasse profundamente.
Todo o conceito do livro me encanta. Essa ideia de uma transformação divina que, de repente, se torna uma maldição, acompanhada de uma dor eterna, é fascinante. Conhecer Elantris e sua dinâmica cruel me prendeu, assim como todo o mistério em torno do Reod. A construção do sistema de magia com os Aons e o Dor como fonte de poder é intrigante, e me vi cada vez mais curiosa a cada passo que Raoden dava em sua busca para entender como tudo funcionava. A descoberta de que os Aons estavam conectados à geografia da cidade, e que o Chasm foi a origem de todo o problema, me pegou de surpresa. No entanto, não posso deixar de mencionar que achei a resolução final um tanto decepcionante. Ver Raoden apenas pegar uma varetinha e riscar o chão para concertar tudo não teve o impacto épico que eu esperava.
Raoden é um personagem que me agrada muito e foi desenvolvido de modo a fazer o leitor realmente se importar com ele. Inteligente, carismático e um líder nato, é fascinante observar como ele utiliza suas habilidades políticas e seu senso de responsabilidade para mudar a dinâmica de Elantris, assumindo a tarefa de cuidar da cidade e, no final, influenciando o mundo além dela. No entanto, a maneira como convence os outros líderes de gangue a se aliarem a ele parece simplista e pouco verossímil. Aanden é persuadido apenas ao ser lembrado de seu passado como artesão; Karata se torna seu braço direito após uma fuga milagrosa de Elantris para ver seu filho; e o grupo de Shaor continua sendo um problema somente até ser conveniente para a trama (o ataque a Sarene), sendo então facilmente subjugado com comida. Acredito que o processo de conquistar lealdade dessas pessoas deveria ser mais gradual, construindo laços de confiança aos poucos, para que ele pudesse transformar de maneira mais convincente a estrutura de poder da cidade.
O outro ponto de vista é o de Sarene, uma personagem que ganha minha empatia, mas que não chega a me cativar por completo. Gosto de sua inteligência e do foco central que ocupa nas intrigas políticas, mas ainda é um pouco engessada pelo papel de mulher que sonha com o amor e se sente solitária. Seria mais interessante vê-la sofrendo pelo amor que poderia ter tido, em vez de pela imagem da “solteirona” que afugenta os homens. Ainda assim, devo admitir que torci e vibrei bastante pelo encontro dela com Raoden. O final apaixonado entre eles é um tanto abrupto, considerando o quão pouco interagiram, mas, sendo uma história de monarquia, isso não chega a ser um problema.
Hrathen, dos três, é o personagem mais interessante de acompanhar, justamente por escapar dessa simplicidade de bom e mau. Ele é odioso na medida certa: cego em seguir as ordens de sua religião e bastante arrogante em como enxerga todos ao seu redor, mas é fascinante ver como ele se debate com a intensidade de sua fé, enquanto cria uma espécie de respeito por Sarene, motivado pela forma como ela o enfrenta. Ele me lembrou bastante Frollo e Esmeralda, de O Corcunda de Notre Dame. É interessante que ao mesmo tempo em que acredita na supremacia de sua religião, não apoia o desperdício de vidas para isso, e constantemente recorre a estratégias complexas para influenciar o desenrolar dos eventos. Seu plano de se tornar um ex-elantriano “salvo” para Jadeth foi genial, assim como usar a mesma estratégia com Sarene para evitar o casamento e subjugar Teod. A plano de jogar o povo contra os elantrianos me lembrou 1984 cuja a estratégia é direcionar o ódio a um inimigo controlável e fabricado. O curioso é que, apesar de servir a um governo realmente perigoso, poucos o levam a sério, e até Telrii o desafia no final. Hrathen acredita estar sempre à frente do jogo político, e isso torna ainda mais impactante a reviravolta ao descobrirmos que ele foi apenas um peão nas mãos do verdadeiro vilão, Dilaf. Ficava claro que o religioso fanático era muito mais perigoso do que aparentava – manipulador e irritante, a ponto de fazer com que, em muitos momentos, torçamos por Hrathen. No entanto, em nenhum momento imaginei que exatamente ele estaria por trás de tudo. Se colocar contra sua tirania é o que leva, de fato, à redenção do Gyorn no final.
No geral, a lore é muito interessante e admirável por sua complexidade e grandiosidade, mas acaba parecendo mais extensa que o necessário. Muitos elementos são apresentados apenas para serem mencionados, sem ganhar real relevância no enredo, o que torna o texto pesado. Shu Derethi, Shu Khorati, Shu Keseg, Jesker, Mistérios de Jekesri, Monastério de Dukhar, Teod, Kae, Duladel e outros territórios e conceitos aparecem na história sem muita explicação e permanecem assim, pois não são realmente essenciais. Além disso, há um excesso de personagens: já temos três líderes de gangue, mas constantemente surge um novo elantriano resgatado, tornando difícil lembrar quem é quem. Quando isso se torna um problema, indica que esses coadjuvantes são irrelevantes. O mesmo ocorre com o círculo político de Sarene, composto por cinco nobres que, a princípio, são difíceis de distinguir. A situação se complica ainda mais com a introdução de um grupo de mulheres e até filhos que pouco acrescentam. A parte do treino de esgrima das damas, por exemplo, acaba sem relevância, assim como o enredo aleatório entre Kin e Eventeo. Algumas linhas narrativas também parecem desconectadas do restante da obra, como o mistério dos barulhos na parede do castelo que leva à morte de Iadon, a descoberta da piscina em Elantris ou a vida de um sacerdote em Kae que altera o sistema baseado em riqueza para algo hereditário – todos exemplos de subtramas que soam pouco ligadas ao núcleo principal.
Acho que um dos maiores problemas desse livro é exatamente que as tramas não se entrelaçam de maneira eficaz. O enredo de Elantris ocorre quase em paralelo ao enfrentamento de Hrathen e Sarene do lado de fora, e as conexões só se estabelecem mais da metade da história. Até Sarene entrar em Elantris, Raoden não tem ideia dos problemas políticos que acontecem fora. Isso faz sentido, considerando que ela não sabia que Spirit era Raoden, mas acredito que o lado externo deveria ter influenciado mais o que acontece dentro, e vice-versa. Isso resulta em Sarene sendo o foco de toda a trama política em Kae. É curioso que ela tenta salvar Iadon para evitar que o governo caia nas mãos dos Fjordels, mas logo depois se vê como a responsável pela derrubada do governo e pela verdadeira instabilidade política. Outro ponto que me chama atenção é como Eventeo não se envolve em nada e deixa tudo nas mãos da filha, sem considerar o impacto que suas decisões teriam em Teod. Além disso, é surpreendente como Sarene é rapidamente aceita e se torna líder do grupo de nobres; novamente, sinto falta de uma construção mais sólida das relações de confiança.
O arco final do livro traz eventos interessantes e consegue transmitir aquele sentimento de caos e urgência, mas sinto que é desenvolvido de maneira um pouco desorganizada. Iadon morre, Sarene decide se casar, é pega pelo Reod e acaba em Elantris. Raoden descobre tudo, Telrii assume o poder, Ahan trai o grupo, Roial morre, Eondel mata Telrii e acaba morto também, Raoden se revela vivo, mas é desmascarado como elantriano. No entanto, isso não leva a lugar algum, pois Sarene convence a todos de que está tudo bem. Dilaf fica furioso e inicia uma guerra junto aos monges do Monastério de Durkhan, que aparecem do nada. Raoden morre, mas logo depois vive novamente e resolve tudo com um traço no chão. De repente, Sarene não está lá porque, do nada, Dilaf a teletransportou para Teod. Raoden também aparata, e a luta se desloca para Teod, onde Hrathen salva o dia. Os elantrianos chegam para a batalha e, finalmente, conseguem vencer, restaurando a paz. Essa sequência de eventos é tão intensa que acaba tornando a história um pouco menos imersiva, já que tudo parece possível de acontecer. São ideias que me agradam, mas que precisavam ser melhor trabalhadas e apresentadas de forma mais lenta ao longo da trama.
Não tenho certeza de como o fato de ser meu primeiro livro em inglês influenciou minha percepção da história, mas sinto que isso me fez gostar mais do que deveria, ao mesmo tempo em que me deixou confusa em alguns momentos. No geral, é uma obra com uma construção política e mágica muito boa, além de apresentar arcos de personagens bem desenvolvidos e um mistério interessante. No entanto, precisaria ser melhor entrelaçada e até enxugada para que os elementos parecessem mais coesos. Apesar das críticas, sempre vou ter um carinho enorme por essa narrativa e seus personagens, já que é um livro que me acompanhou por tanto tempo e se tornou um verdadeiro desafio de leitura.