Pietra Galutty 21/04/2023
My Dearest Fanny Price...
Jane Austen (1775-1817), em seu terceiro livro publicado Mansfield Park (1814) já com traços da maturidade na escrita da autora - um tom mais contido, se comparado à Orgulho & Preconceito (1813) e Razão & Sensibilidade (1811).
"Porém, na verdade, não existem no mundo tantos homens ricos quanto belas mulheres para merecê-los". (pg. 9)
Na obra, acompanhamos a história de Fanny Price, uma menina frágil e tímida que nasceu em uma casa pobre e sem recursos. No entanto, Fanny conta com o fato de ser sobrinha de um baronete de uma família rica e aristocrática - a família Bertram. Fanny é filha de uma das irmãs que fez um casamento por amor, porém altamente desvantajoso. Sendo a prima pobre de uma família bastante abastada, Fanny é adotada com apenas dez anos e passa a viver em Mansfield Park com seus primos, sua Tia Bertram, Sir Thomas Bertram e a nauseante Tia Norris.
Fanny, apesar de ser sobrinha legítima de um baronete, não é considerada efetivamente parte da família Bertram. Este traço é muito bem delineado na obra: Fanny não é uma igual naquele ambiente, nunca devendo ser tratada como tal. A diferença de tratamento entre Fanny e suas primas, Maria e Julia Bertram (bem nascidas e afortunadas), é encorajada desde o início. A Tia Norris faz boa parte do trabalho sujo: Fanny é apenas uma ação de caridade, não pode ser igual aos demais em seu convívio. Os papéis sociais e a divisão de classes são muito bem delineados nesta sociedade.
"Porém, mesmo assim, elas não podem ser iguais. A linhagem, a fortuna, os direitos e as expectativas serão sempre diferentes". (pg. 16)
"(...) Porque as pessoas nunca são respeitadas quando ultrapassam os limites do seu meio. (...) Eu lhe suplico e imploro que não se exiba, conversando e dando opinião como se fosse uma das suas primas, como se fosse a querida sra. Rushworth ou Julia. Isso não dará certo, acredite. Lembre-se, onde quer que esteja, você deve ser a mais inferior e a última". (pg. 207).
Fanny Price é uma heroína austeniana que vai pela linha transversa das demais: ela não é aventureira, imprudente, audaciosa. Não. Fanny é o oposto disso. Tendo em vista o ambiente de subserviência em que cresceu, ela desenvolveu uma submissão completa - uma criação abusiva, em que ela é obrigada a sempre reconhecer como os tios são benevolentes por criá-la, como tem sorte por ter a vida que tem. Ela não odiava ninguém: era sensível, tímida e prestativa com todos. Fanny aprendeu que quanto mais invisível ela for, melhor para sua sobrevivência.
"E, embora Fanny as vezes se mortificasse pelo tratamento recebido, menosprezava tanto os próprios direitos que nem se magoava". (pg. 24)
Nesse cenário, apenas Edmund Bertram, o primo mais novo de Fanny, é seu conforto diário. Naquele ambiente de indiferença, e até mesmo de preconceito contra essa menina 'sem cultura', apenas Edmund, destinado a ser clérigo, era bondoso e a consolava. O menino desde pequeno ajuda Fanny a superar sua timidez e a se sentir confortável naquele lar, tratando-a com respeito e consideração. Com o tempo, Fanny desenvolve um grande sentimento pelo primo, sabendo desde o início que o amor dos dois é impossível.
"Sem exibir que fazia mais do que os outros, sem temer fazer demais, Edmund era sempre fiel aos interesses de Fanny, atento aos seus sentimentos, tentando fazer com que as suas boas qualidades fossem percebidas e vencer a timidez que as impedia de serem mais aparentes, dando-lhe conselhos, consolo e incentivo". (pg. 25).
Com o passar dos anos, Fanny Price se torna uma moça bela e passa a despertar a atenção de todos, e é nesse cenário que o convívio de Mansfield Park nunca mais será o mesmo: a chegada de um casal de irmãos, Mary e Henry Crawford, de passagem nos arredores de MP, muda a configuração de tudo. Henry é um jovem rico e muito astuto, algo mais próximo a um cafajeste para os padrões de Jane Austen. O Mr. Crawford fará de seu deleite pessoal conquistar Fanny Price, não com as melhores intenções do mundo.
"Ele é o namorado mais difícil que se possa imaginar. Se essas suas srtas. Bertram não gostam de ter os corações despedaçados, diga-lhes que evitem Henry". (pg. 44).
"(...) Não, o meu plano é fazer Fanny se apaixonar por mim. (...) Mas eu não consigo me contentar sem Fanny Price, sem fazer um pequeno buraco no coração de Fanny Price". (pg. 214).
"Só quero que ela me veja com bondade, me dê sorrisos e enrubesça, guarde uma cadeira para mim ao seu lado, onde quer que estejamos, mostre-se muito animada quando eu me sentar ao seu lado para conversar; que pense como eu, se interesse pelos meus bens e pelos meus prazeres, tente me manter por mais tempo em Mansfield e, quando eu for embora, sinta que nunca mais voltará a ser feliz. Só quero isso". (pg. 216).
Fanny Price, ainda que seja uma as protagonistas austenianas criticadas por sua apatia, se impõe na hora em que é testada, mostrando grande força de caráter ao negar um casamento altamente recomendado, especialmente em razão da fortuna que ela adquiriria. Fanny é a grande protagonista que demonstra a importância da resiliência e a força que pode vir através do silêncio, paciência e perseverança.
"Você só vê metade da situação. Vê o mal, mas não vê o lado consolador. Sempre haverá pequenos atritos e decepções por toda parte, e todos nós vivemos esperando demais. Porém, se um esquema de felicidade falha, a natureza humana busca outro". (pg. 48).
"Refletia sobre o passado, o presente e o futuro, numa agitação nervosa que lhe turvava o raciocínio, deixando claras apenas duas coisas: a convicção de que, independentemente das circunstâncias, seria incapaz de amar o sr. Crawford, e a felicidade de ter uma lareira acesa, junto à qual podia se sentar e meditar". (pg. 304).
"Toda mulher deve sentir a possibilidade de um homem não ser aprovado, não ser amado por alguém do sexo feminino, ainda que ele seja agradável. Mesmo que ele tenha todas as perfeições do mundo, creio que não se deve dar como certo que esse homem necessariamente seja aceito por qualquer mulher de quem ele venha a gostar". (pg. 327).
Mansfield Park, diferentemente dos livros anteriores de Jane Austen, tem uma preocupação maior em retratar a realidade social da época (Inglaterra do começo do séc. XIX), do que propriamente contar uma história de amor de tirar o fôlego. A obra em si possui um conteúdo moralizante, comentários sobre educação, papéis de gênero, papéis social e pretende passar um conteúdo moralizante.
"Todo esse questionamento dependia de uma única pergunta: será que ela o amava o suficiente para renunciar ao que considerava pontos essenciais; ela o amava o suficiente para deixarem de ser essenciais? E essa pergunta, que ele repetia muitas vezes para si mesmo, embora fosse respondida mais frequentemente com um "sim", algumas vezes tinha como resposta um "não"." (pg. 238).
Outro ponto forte da obra, é mostrar como o mercado de casamentos é totalmente hipócrita naquela sociedade. O livro em si é bastante ousado para os padrões de Austen, tratando de temas tabus como adultério e divórcio. Ler Jane Austen é sempre um exercício para o raciocínio, que aguça a nossa inteligência. A autora é genial com seus comentários irônicos e observações muito acertadas sobre a realidade social de sua época, observações que ecoam ainda em nossa realidade de 200 anos depois.
"Neste ponto, propositalmente me abstenho de datas, para que todos tenham a liberdade de fixar as suas, cientes de que a cura de paixões inconquistáveis e a transferência de afetos imutáveis variam muito quanto ao tempo em diferentes pessoas". (pg. 436).
"(...) Haveria algo mais natural do que a mudança? (...) O que mais poderia se acrescentar a tudo isso agora, senão que ele devesse aprender a preferir olhos claros e suaves a olhos escuros e brilhantes?" (pg. 437).