Pandora 13/10/2024
A mais coadjuvante de todas as protagonistas ou a mais protagonistas de todas as coadjuvantes
Heráclito disse: "Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.".
Ler "Mansfield Park" pela segunda vez, passadas quase duas décadas desde a primeira leitura, me fez pensar que livros são rios, palavras são águas e meu próprio ser se modificou com a passagem do tempo. A leitura que 18 anos atrás considerei arrastada, hoje me pareceu dinâmica, vibrante, cheia de situações interessantes. Me senti cúmplice de Jane Austen, entendendo tão bem o que ela queria dizer e qual o propósito dela na escrita desse livro.
Em "Mansfield Park" somos apresentados às Irmãs Ward, de Huntington, todas são beldades, mas apenas uma delas, Maria Ward, teve a felicidade de casar com um homem rico, Sir Thomas Bertram, de Mansfield Park. Como, nas palavras de Jane Austen, "não existem no mundo tantos homens ricos quanto belas mulheres para merecê-los" as outras duas tiveram que se conformar com casamentos menos afortunados. Uma casou com um clérigo da Igreja Anglicana, o Sr. Norris, e a outra, a Srtª Francis, para o desgosto da família, casou com um tenente dos Fuzileiros Navais, sem educação, fortuna ou relações sociais, o Srº Price.
Nossa heroína é a filha mais velha de um conjunto de nove crianças e acaba indo morar em Mansfield Park aos dez anos, quando suas tias decidem que aliviar sua desafortunada irmã do peso de uma das suas filhas é uma ação caridosa. Nossa protagonista emerge como uma menina franzina, tímida, nervosa, de saúde frágil, morando de favor em uma casa senhorial em uma situação na qual ela é menos que uma filha e apenas um pouco mais que uma criada. Nem as primas se interessam por ela, nem a criadagem da casa, ela vive na margem ou nas sombras, só o primo Edmund se digna a olhá-la e lhe confere importância a ponta se tornar seu único amigo. Fanny Price é a mais coadjuvante de todas as protagonistas ou a mais protagonista de todas as coadjuvantes da Literatura Ocidental.
"Aqui, eu sei, não tenho valor para ninguém, mas mesmo assim amo esse lugar." (pág. 31).
Fanny se move pelas sombras em uma narrativa onde as coisas acontecem muito mais aos outros que a ela, mas esse é o romance de Jane Austen no qual mais coisas acontecem no conjunto da obra. É uma trama cheia de episódios, um livro no qual quando a gente pensa que todas as coisas possíveis de acontecer já aconteceram a autora vem e "Surpresa! Olha aqui mais uma reviravolta!". Além das reviravoltas, ainda temos a sagacidade e a ironia fina da autora, em nenhum outro texto a pena de Jane Austen esteve tão afiada, tão ácida, ela escreveu esse livro com o mais puro suco do veneno. Como todo cuidado necessário a uma mulher que viveu em uma sociedade praticante de um apartheid social contra as mulheres, ela expõe uma série de hipocrisias, mesquinharias, torpezas, ignorâncias, vilanias.
Alguém procurando uma história de amor pode se frustrar lendo "Mansfield Park", porém se a pessoa estiver interessada em conhecer um pouco sobre a vida íntima da branquitude inglesa através da perspectiva de uma mulher branca sagaz e atenta observadora das relações humanas esse é um livro incrível. O século XIX consagrou a Inglaterra como o maior Império Colonial do Planeta Terra, os lordes ingleses administravam não só suas terras ancestrais como faziam dinheiro com a exploração de colônias na África, Ásia e América e isso não passa despercebido pela autora de "Orgulho e Preconceito", Sir Thomas, o tio de nossa Fanny, inclusive se ausenta para ir cuidar de sua propriedade no Antígua, uma ilha no Caribe Inglês.
Esse é aquele livro que é divertido de ler, não pelos personagens em si, mas pela forma como a história é contada. A Jane tá o puro suco do amargor como narradora e perceber esse estado de espírito disposto ao fino deboche dela fez a minha alegria durante a maior parte da leitura. Entre os personagens oscilando entre o mau-caratismo, egoísmo, lerdeza, mesquinhez e vaidade, foi muito bom ver o deboche cobrindo tudo e todas as coisas. Para citar um exemplo, deixo um trecho no qual a autora descreve o processo de apaixonamento de um Edmund pela Srtª Mary Crawfort:
"Uma jovem bonita e animada, com uma harpa igualmente elegante, e ambas perto de uma janela aberta até o chão, dando para um pequeno gramado cercado por arbustos com a rica folhagem do verão, tudo isso bastaria para cativar o coração de qualquer homem. A estação, o cenário, o clima, tudo era favorável à ternura e aos sentimentos. A sra. Grant e o seu bastidor de bordar também eram úteis. Tudo estava em harmonia - e, como todas as coisas contribuem para um propósito quando o amor se instala, tudo valia a pena admirar, até a bandeja de sanduíches prestigiada pelo dr. Grant." (pág. 66)
Voltando a falar da trama do livro, a história ganha emoção quando o Sir Thomas Bertram precisa viajar para cuidar de sua propriedade em Antígua e ao mesmo tempo chega a vizinhança de sua residência os irmãos Mary e Henry Crawfort, ambos herdeiros de uma considerável fortuna. Henry é charmoso e belíssimo, mas de caráter duvidoso; Mary é uma moça bonita, de boa estirpe, com um bom dote, consciente de seus atributos e vaidosa. O quarteto formado pelos filhos e filhas de Sir Thomas, Mary e Julia, Tom e Edmund logo se entrosa com esses vizinhos formando um grupo muito pouco virtuoso vivendo sua juventude em bailes, flertes, passeios, ensaios de uma peça de teatro bem imprópria, enquanto Fanny fica ali, canhestra pelos cantos. Um pouco sonsa? Talvez!
"Fanny observava e ouvia tudo sem deixar de se divertir vendo o egoísmo mais ou menos disfarçado que parecia governar a todos e se perguntando como terminaria tudo aquilo. Para gratificação pessoal, ela gostaria que algo fosse encenado, pois jamais vira sequer metade de uma peça, porém todas as circunstâncias de maior peso eram contrárias. (pág. 127)
Em minha primeira leitura achei a protagonista desse livro muito apática, mas nessa segunda experiência passei a achar que dentro do universo limitado no qual Fanny está ela é uma das personagens femininas mais sólidas da literatura. Ela é muito consciente de seu lugar dentro daquela família, da estreiteza de sua margem para errar, de quão poucas são as suas possibilidades de escolha. Quando ela é convidada a escolher algo, precisa ser ajuizada, pesar bem os prós e contra, medir o quanto pode perder de sua felicidade e tranquilidade. No auge de seus 18 anos, dentro de uma posição desfavorável ENTENDER NOSSOS SENTIMENTOS INTERIORES e dizer NÃO quando somos pressionadas a dizer SIM é um exercício difícil, todavia a frágil Fanny consegue manter sua integridade, se ouvir e dizer não quando necessário.
"Fanny só era necessária como ponto e espectadora. Na verdade foi investida da função de juíza e crítica e desejava sinceramente exercê-la e aponta-lhes os erros, mas todos os seus sentimentos interiores recuaram e ela não conseguiu, não quis, nem ousou tentar. (pág. 162)
Entender e amar a integridade de uma personagem que não anseia por falar, não se precipita quando precisa tomar decisões, não participa da maior parte das ações descritas ao longo das páginas do livro se colocando na posição de observadora e ouvinte requer um pouco de maturidade da pessoa leitora ou pelo menos requereu de mim. Fanny é muito solitária desde a infância e com a chegada dos Mary e Henry Crawfort fica ainda mais solitária, afinal Edmund, o mais tonto dos herois Austerianos, cai de amores pela Mary, mas consciente de si e dos outros ela ouve, observa, sabe dizer não e vai se tornando uma síntese daquele meme "A calada vence".
Como já disse, esse é o romance Austeriano no qual mais coisas acontecem, quando a gente pensa que tudo já aconteceu alguma reviravolta acontece, então vou me furtar de comentar a totalidade dos eventos dessa história. Vou ousar terminar esse texto afirmando que se Fanny Price não é a personagem mais iluminada da obra de Jane Austen, ela é a que mais "sofre enxovalhos e calada" e ainda assim consegue ouvir a si mesma na hora de tomar decisões difíceis e sustentar sua opinião sobre as coisas. Mesmo muito jovem e tendo muitas poucas possibilidades de escolha sabe dizer NÃO e manter esse NÃO. Essa mulher consciente de seu papel como coadjuvante na vida de todas as pessoas a sua volta sabe ser protagonista da sua própria vida e guardiã da sua dignidade pessoal. Admirável, lúcida, vencedora.
Te amo Fanny Price, quero aprender com você a ouvir meus próprios sentimentos e saber dizer NÃO quando for necessário. Te amo Jane Austen quarentona, amarga, implacável na crítica de tudo e todos que fizeram a vida das mulheres ser impraticavelmente difícil no início do século XIX, vou tentar ser implacável também com as coisas que fazem a vida das mulheres difícil nessa primeira metade de século XXI.
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