Val 06/07/2024
Com Deus e o diabo no meio do nada.
Contive-me na infância e na juventude, mas agora, maduro, após ler uma síntese biográfica do escritor e jornalista britânico Daniel Defoe, rendi-me a Robinson Crusoé. Um livro exuberante do início do século XVIII (1719) e que, portanto, há mais de trezentos anos nos ensina lições de vida.
Na realidade é um livro dirigido a adultos, pois para eles foi escrito, e talvez maçante para jovens de hoje, apesar de suas grandes aventuras. Porém, uma obra importante na formação desses mesmos jovens por suas inumeráveis reflexões para tomada de decisões e descrições de procedimentos básicos de sobrevivência e produção de artefatos artesanais, alimentos, vestuário, navegação e defensas.
Escrito no formato quase epistolar, o livro apresenta-nos a história de um jovem inglês sonhador que queria ser marujo e passa por muitas dificuldades em navegações atlânticas, vira prisioneiro de muçulmanos, torna-se fazendeiro rico no Brasil – algo raramente citado nas sinopses e críticas à obra – e acaba como náufrago, reinventando sua subsistência. Grande parte do livro Defoe dedica às aventuras de Crusoé numa ilha onde luta pela sobrevivência por longo tempo.
O enredo é baseado numa história real do náufrago escocês Alexander Selkirk, perdido por quatro anos numa ilha do Pacífico Sul, em frente ao Chile, hoje denominada Ilha Robinson Crusoé. Este fato tem confundido alguns críticos e jornalística que se referem a essa ilha como a qual o personagem viveu, quando na verdade a história da obra de Defoe passa-se na Ilha de Tobago, no Caribe, na costa venezuelana.
A obra é um primor de criatividade nas aventuras e situações inusitadas, mas peca nas inúmeras – e às vezes infindáveis em longos parágrafos – citações bíblicas e reflexões sobre religiosidade (Deus, pecado e a Providência), perfeitamente compreensíveis e aceitáveis pela própria formação do autor e pela forte predominância da igreja católica na cultura da época, período da feroz Inquisição Católica em Portugal e na Espanha. E passa a ser o liame da sobrevivência do solitário Crusoé num local inóspito e deserto. Assim, afirmo que Defoe conseguiu colocar Robinson Crusoé sozinho, de forma primorosa e brilhante, entre Deus e o diabo na terra do nada.
Seu final é surpreendente, com o – agora empresário milionário – protagonista Crusoé e seu servo Sexta-feira vivenciando novas aventuras agora em plena Europa. Um final que também valoriza o lado bom das pessoas e compensa com honras a grande virtude da verdade e da honestidade.
É um livro importante para a história da formação do romance moderno por seu ineditismo ao apresentar de forma singular a estrutura colonialista, religiosa, geográfica e econômica da época. A história já inspirou quadrinhos, desenhos animados e vários filmes, inclusive do gênio Luis Buñuel, e proporcionou incontáveis produções literárias ao longo dos séculos.
Mas, por seu conteúdo reflexivo e de ponderações bastante sérias sobre a vida, medos e sobrevivência, e apesar de conter muita aventura, não deveria ter jamais uma conotação ou versão infantil, bastante fora dos propósitos da obra. Infelizmente, para efeito de aumentar seus faturamentos, várias editoras desenvolveram inescrupulosamente versões infanto-juvenis dessa obra, distorcendo os elementos debatidos pela mesma e deturpando seus princípios literários. Portanto, havendo interesse em sua leitura, recomendo que procure uma boa tradução da versão original como a da série Clássicos da Penguin/Companhia (apesar de ter na capa um mapa errado da localização da história). Afinal, Robinson Crusoé é um clássico da literatura muito além de uma aventura infantil.
Valdemir Martins
23.07.2020
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