Coruja 13/07/2022Após deixar a casa paterna e passar por várias aventuras e infortúnios, o marinheiro amador Robinson Crusoé naufraga na região do Caribe e termina sozinho numa ilha deserta. Ali ele vai passar os próximos vinte e oito anos buscando sobreviver em seu isolamento, até a maré da sorte virar a seu favor, o que começa quando ele salva um indígena da tribo de canibais da região, a quem dará o nome de Sexta-Feira.
Mesmo quem nunca leu o clássico de Daniel Defoe está familiarizado com esse enredo - a figura de Crusoé pertence ao imaginário coletivo e faz parte de uma longa linhagem de aventureiros em ilhas desertas. É significativo que seu nome tenha sido substantivado para batizar um inteiro gênero de narrativas sobre naufrágios e sobrevivência: são elas conhecidas como ‘robinsonadas’ (o que me faz pensar com meus botões que Perdido em Marte pode muito bem ser lido como uma espécie de robinsonada no espaço).
A primeira vez que me deparei com a história, tinha uns dez anos, numa daquelas séries de ‘clássicos para a juventude’. Ganhei uma coleção inteira de uma vizinha da minha avó - uma pessoa que não apenas me presenteou com livros, mas foi uma das primeiras com quem tive conversas literárias fora do ambiente escolar. Dona Etelvina me apresentou não apenas a um mundo inteiro de intrépidos exploradores como ao prazer de debater histórias; as tardes que passei em seu alpendre foram, de certa maneira, o protótipo das reuniões dos clubes de leitura de que participei e até das conversas que mantemos aqui no blog.
Simbad, Ben-Hur, D’Artagnan e seus mosqueteiros, Robin Hood, Gulliver, Marco Polo, Capitão Nemo, Phileas Fogg… todos eles eu descobri naqueles livros. E me apaixonei pelo gênero, por esses personagens de espírito audacioso, com a quebra dos parâmetros heroicos que eu conhecia de devorar mitologia. Nenhum desses personagens seguia as regras estabelecidas, lançando-se no desconhecido com um arrojo que eu achava inspirador.
Mais de vinte anos se passaram entre a leitura ingênua sedenta de aventuras e a releitura mais atenta que fiz recentemente (justamente por causa de um dos debates do clube) - e o foco da atenção se deslocou completamente das façanhas físicas para a jornada espiritual e filosófica com que Crusoé se defronta em seu longo isolamento. Não é surpresa, considerando o contexto de estarmos, nós mesmos, saindo de um período de confinamento (ainda com cuidados e ressabios).
Robinson Crusoé é, a princípio, a figura típica do ‘filho pródigo’, que sai de casa contra a vontade dos pais e passa por mil e uma provações até passar por uma conversão, crendo na Providência Divina. Mas, ao contrário do bom filho que a casa torna - arrependido e com todas as lições aprendidas - Crusoé é o triunfo do homem que faz a si mesmo, um personagem integral do mito individualista moderno.
Publicado em 1719, a obra de Defoe é considerada por muitos o primeiro romance realista - e o primeiro romance inglês. O crítico Ian Watt, em
A ascensão do romance, considera Defoe, com Richardson e Fielding, os pais do romance como gênero narrativo - termo, aliás, que só se consagrou no final do século XVIII (“
novel” em inglês, vez que “
romance” tem outro significado. Em português, “romance” abarca as duas definições e, por vezes, complica a explicação…). Caracterizam esse novo gênero o realismo (com uma costura de fatos descritivos que por vezes se torna bem cansativa ao leitor contemporâneo) e enredos não derivados de outras histórias (mitologia, folclore e outras fontes que sempre serviram de base ao teatro Shakespeariano, por exemplo; ou a sátira de Cervantes, que se constrói em cima do conhecimento do leitor das regras dos romances de cavalaria).
Esse realismo, na análise de Watt, não se demonstra apenas na forma como a vida é apresentada, com ações, enumerações, fatos que reconhecemos do cotidiano; mas na maneira como a narrativa apresenta protagonistas que se acercam da realidade numa análise filosófica, algo que, como em
Robinson Crusoé, bebe muito das teorias de Locke e Hobbes. Os romances realistas têm enredos inteiramente inventados - ou parcialmente inspirados em incidentes da época - com protagonistas que estão constantemente contando e recontando a disponibilidade de recursos, costurando fatos na tentativa de levar leitor e personagem a uma resolução empírica.
Cá entre nós, a repetição que deriva desse aspecto nem sempre funciona para nossa sensibilidade moderna. Mas, à época em que o livro foi publicado, essa forma nova de contar histórias conquistou o público de tal forma que pode-se falar que
Robinson Crusoé foi um dos primeiros
best-sellers da História. Com um protagonista autossuficiente, capaz de disciplina, trabalho duro, sacrifício e temperado por uma nascente consciência religiosa, não é de se espantar seu sucesso, especialmente entre os puritanos.
É claro que Defoe não está sozinho e é difícil eleger um único livro para inaugurar todo o gênero do romance/
novel - há sempre uma árvore genealógica literária em que um autor deve tanto a outro, subindo até nossos mitos mais antigos. Mas Crusoé tem sua importância histórico-literária na forma como bebe de valores burgueses, dá protagonismo a uma classe média em ascensão e retrata muito bem a engrenagem do capitalismo mercantilista que começava a dominar o sistema mundial.
Nesse aspecto, e voltando a Watt, o crítico coloca Crusoé como um mito do individualismo moderno, em específico, um individualismo econômico, com sua quase obsessão por recibos e contratos (mesmo na ilha, quando ela deixa de ser tão deserta) e constantes lances de contabilidade. É, aliás, característica de todos os protagonistas de Defoe a busca por ganhos financeiros e mobilidade social (lembrando que a possibilidade de mobilidade social lícita, dependente do trabalho do indivíduo, era algo bem recente então).
Então, aventura, jornada espiritual e filosófica, materialismo capitalista… o que mais
Robinson Crusoé tem a nos apresentar para reflexão?
Durante as décadas que passa cultivando sua ilha solitária, Crusoé parece ansiar por companhia… mas o que realmente deseja é um escravo. Quando suas preces são respondidas e um ‘selvagem’ lhe cai em mãos, ele não pergunta o nome do rapaz, batizando-o rapidamente de Sexta-feira; tampouco dá ao novo companheiro seu próprio nome, mas ensina entre as primeiras palavras que permitirão a comunicação dos dois que quer ser chamado de ‘amo’. Seu nome próprio é privilégio que reserva aos papagaios em vez do ser humano. Quando outros vêm dar as suas praias - espanhóis católicos - ele os chama de súditos.
Não é algo de se surpreender, considerando as desventuras do náufrago desde o início do livro. Mesmo tendo sido escravo na costa africana e fugido com a ajuda do garoto Xury, ele pouco hesita em vender o rapazote quando a oportunidade surge, só se arrependendo na medida em que percebe os usos que poderia ter feito do garoto se esse o tivesse acompanhado a ilha. Quando chega ao Brasil e se vê à frente de um engenho, Crusoé se torna ele mesmo senhor de escravos. Foi, aliás, numa expedição para conseguir mais mão-de-obra para vender aos vizinhos que terminou isolado em sua ilha.
A verdade é que no isolamento da ilha, Crusoé se revela mais humano, seja no gênio de reinventar a civilização com as poucas ferramentas que tem; seja na busca por forças e resolução num plano mais espiritual. Em sociedade, contudo, ele pouco se importa com quem quer que seja além dele mesmo. Ele se isola, não apenas pela experiência da ilha, mas por seu senso de superioridade cultural que o torna um garoto-propaganda sob medida do imperialismo colonial britânico.
Eu meio que esperava algo do tipo nessa releitura, mas foi um choque perceber o quão diferente foi a leitura de
Robinson Crusoé hoje da que fiz quando criança. Vinte anos atrás, empolgava-me a aventura. Agora, a mesma história incomoda e faz questionar. E não faço a menor ideia de onde tirei a noção de que Crusoé e Sexta-feira seriam os antecedentes da amizade de Frodo e Sam, pois existe muito pouco de amizade entre o senhor da ilha e seu criado resgatado.
Não tenho como deixar de comparar Crusoé ao grupo de náufragos aéreos de A Ilha Misteriosa, de Jules Verne, com enorme vantagem para os ilhados do francês. Bem verdade, Verne leva para sua ilha um grupo inteiro de exilados, com experiências de vida bem diferentes, em vez de um único exemplar da raça humana - mas tanto nos lances aventurescos, quanto na engenhosidade e no espírito fraternal, eles superam o isolacionista inglês.
Enfim,
Robinson Crusoé é uma obra interessante para contextualizar e debater, tendo seu lugar e importância no cânone. É um tipo de narrativa diferente da que estamos acostumados hoje, mais lenta, mais descritiva, e mais polêmica também. Compreender a sociedade em que a história nasceu - uma sociedade da qual Crusoé é um representante fiel - deve andar de mãos dadas com a leitura crítica aos conceitos e instituições que eram aceitos então.
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