Clara 12/01/2022
O jardim de memórias ou “o virgem, o vívido e o belo hoje em dia”
Uma das tarefas mais difíceis é resenhar um livro quando acabamos de lê-lo, e ainda assim, é a tarefa mais fluida que conseguimos nos permitir, depois de uma intensa imersão na obra.
São tantas informações e descrições que o Autor mastiga, que neste momento escrevo mais pelo desejo de fazer uma digressão na obra nos pontos que mais me aguçaram – sem muita técnica, aviso logo aos navegantes.
Nos primeiros capítulos somos levados a conhecer o narrador, que nos fala de um passado-presente (1960?), enquanto faz uma gita al mare em uma praia no litoral próximo a cidade de Roma com alguns amigos. No caminho de volta para a Cidade Eterna, o motorista decide parar no parque arqueológico de Cerveterri, a necrópole da Banditaccia, onde jazem os Etruscos, os mais antigos moradores da península itálica. Caminhando pela necrópole, há uma fala que corrobora com o gatilho do narrador para revisitar as lembranças de sua juventude na cidade de Ferrara, partindo da memória do suntuoso mausoléu da família Finzi-Contini.
Explorando mais afundo, com o passar das páginas, conhecemos fragmentos desta família judia, muito abastada, que vivia reclusa no vasto terreno localizado ao fim da Avenida Ercole Este I, margeada pelo Muri degli Angeli (não é pedantismo italiano, as ruas são chamadas assim no livro). O “barchetto del duca” era um terreno grande o suficiente para comportar a casa principal em que viviam, a casa dos trabalhadores, uma quadra de tênis, uma espécie de vestiário (a Haütte) e, logicamente, um frondoso jardim que abrigava os hábitos de seus moradores.
O enredo se destaca pelo relacionamento do narrador com a família, e em particular do amor que nutria por Micòl Finzi-Contini.
Aviso que a partir deste ponto haverão spoilers.
É inquestionável a beleza da escrita de Giorgio Bassani, quanto a isto não me aprofundarei, até porque não estou sendo técnica e tão somente compartilho impressões pessoais. Pesquisando sobre a obra – e pelo prefácio na edição italiana por Eugenio Montale – há nitidamente um traço quase autobiográfico, a ponto de terem momentos do livro que senti estar atravessando íntimas confissões do próprio Bassani.
Mesmo com essa intimidade que nos é atravessada, sinto muito pouca compaixão por ele quando descreve o amor não correspondido por Micòl, neste ponto confesso que vi a motivação do narrador muito invasiva e desrespeitosa – ainda que receba sucessivas negativas da amada, ele insiste em abordagens que me deram vontade de rasgar o Kindle no meio. Voltarei a este ponto ao final para pormenorizar minha impressão sobre o desfecho da obra e por hora me debruçarei pelo contexto histórico do livro e por fim pelos personagens.
Um elemento que parece desenhar a história é a proximidade do estouro da Segunda Guerra Mundial: tanto o Autor/Narrador quanto os Finzi-Contini são membros da comunidade hebraica de Ferrara e pouco a pouco são impedidos de frequentar espaços públicos, como a expulsão do Clube de Tênis e a Biblioteca Central, e igualmente proibidos de participação política, como consequências diretas das leis raciais sancionadas por Mussolini.
Por falar nesta participação política, dá-se a entender que o partido fascista de Ferrara tinha muitos dos seus integrantes membros da burguesia judaica (o pai do narrador é um exemplo), o que me deu uma certa confusão a primeira leitura. Fico pendente de dar informações históricas acuradas, mas me pareceu que pela recente unificação da Itália e o crescente medo do Socialismo, pintado pela figura de Stálin (ocasionalmente mencionado), criou uma polarização na população, que se dividia entre fascistas x socialistas – com alguns isentos, a ver o Professor Ermanno Finzi-Contini.
Aproveitando a deixa, quem eram afinal esses Finzi-Contini? Sinceramente, os via como uma família de aparências e pouco afeto, trancafiados no Barchetto del Duca, com pouca vida vivida fora dos muros, os vi como figuras estranhas, que se colocavam a cima e destacados até da própria comunidade judaica Ferrarese. O pai, Prof. Ermanno Finzi-Contini transparece uma figura passiva, no sentido de pouco refletir ou preocupar-se com os movimentos externos da Guerra que se aproximava. Era um letrado, porém um homem de pouco posicionamento. Tratava a todos de modo simpático e aberto, mas um tanto vazio de si e de personalidade. A esposa, Sra. Olga, pouco aparece na história, e minha leitura dela é um tanto exagerada, assim como o medo de germes e bactérias que aquela nutre. Faço uma “menção honrosa” ao irmão desta, que é “medico e que não acredita em medicamentos” (devo dizer que algumas coisas da história não passaram batido, principalmente em plena pandemia).
Agora ao filho Alberto: um reflexo do pai, um rapaz que teve todo os cuidados e mimos, mas que herdou a falta de personalidade e presença – os únicos momentos que tem opinião por alguma coisa, não é genuinamente sua, mas pega “emprestado” de Giampi Malnate ou do narrador. Giampi Malnate é um personagem interessante, pelo qual sabemos pouco, mas foi um dos que mais gostei, justamente porque ele vem de fora do “universo de alienação”, com posicionamentos e temperamentos de alguém que tem o que dizer. Em um breve momento cheguei até a pensar que Alberto e Giampi tivesse algo para além da amizade, porém isso caiu por terra a medida que a leitura foi chegando ao fim.
A última e não menos importante, Micòl Finzi-Contini: o que nenhum de seus familiares tem de personalidade parece que ela sugou inteiramente para si. Determinada, desafiadora, mimada, impulsiva, forte e fugaz, Micòl também parece viver no mundo de ilusões do Barchetto del Duca e talvez – para além da futilidade – utilizasse a desculpa de que “o futuro a aborrecia” como uma forma de se blindar do medo e do destino, já que ela era tudo menos boba e vulnerável.
O relacionamento entre ela e o narrador sempre foi ditado e dominado por ela, até quando orquestrou suas saídas evasivas, como quando perde o controle da situação, como quando ela escapa para Veneza para concluir a tese. Li todo o processo de insistência do narrador – que pinta um amor puro e honesto – como uma intromissão no espaço o qual Micòl nunca havia permitido e confesso que meus nervos ferveram após o incidente no quarto, ali temi que algo pior acontecesse, porém, astuciosa e detentora de um poder que fora entregue de bandeja pelo narrador, consegue impor um afastamento duro e necessário (mesmo assim, não digno de pena).
A suposição que o protagonista cria de um relacionamento entre Micòl e Giampi Malnate parte muito mais da incapacidade dele em admitir os excessos que incorreu. Acredito que nada tenha acontecido entre eles, e ainda que o fosse, que importaria?
Por fim, a cena em que o narrador tem uma conversa franca com o pai, após chegar tarde em casa depois de ter aberto suas vulnerabilidades para Malnate, assim como o Epílogo, para mim são o tesouro do livro, e agradam no desfecho.
Apesar de ser um livro sem muitos acontecimentos ou até um clímax, recomendo a leitura, não só pela beleza da escrita, mas por todos os detalhes e história que constituem a narrativa.