João Ks 18/01/2019
Os Bruzundangas - Lima Barreto.
Lamentavelmente, o Brasil ainda é um retrato cuspido e escarrado (ou melhor: esculpido em Carrara) da República de Bruzundanga.
"Os Bruzundangas" teria sido escrito por Lima Barreto nos idos de 1917, mas publicado postumamente em 1922.
O livro não se caracteriza propriamente como um romance de personagens, podendo ser identificado mais como um conjunto de crônicas ou sátiras. As crônicas são narradas por um viajante, que, após ter conhecido o curioso país "Bruzundanga”, passa a relatar as impressões que acerca dele formara.
Na medida em que a leitura evolui, o leitor brasileiro pode se surpreender com a familiaridade encontrada nos usos e nos costumes daquele povo exótico, os bruzundanguenses. É que deliberadamente a Bruzundanga de Lima Barreto constitui um retrato fiel do Brasil do início do século XX. E, podendo-se dizer mais, trata-se de uma alegoria representativa do Brasil de nosso tempo. Obviamente, guardadas as devidas proporções, desde que o livro fora escrito houve significativa evolução nas relações privadas, tornando-se obsoletos alguns usos e costumes descritos na obra. Contudo, ainda assim é possível identificar importantes continuidades daquelas práticas culturais no Brasil atual, especialmente no que toca à esfera governamental e suas relações administrativas.
A narrativa vai sendo desenvolvida a partir do ponto de vista do viajante, cujas impressões vão sendo organizadas em "notas" que compõem os capítulos do livro. Em tais "notas", o viajante descreve os "curiosos" e "interessantes" traços da vida pública e privada dos habitantes da Bruzundanga.
Assim é que os mais diversos setores da cultura bruzundanguese vão sendo descritos. É assim que o leitor vai tendo o prazer (ou desprazer) de conhecer "a sociedade", "a nobreza", "as eleições", "os heróis" e até a "Constituição" da República de Bruzundanga.
Nesses capítulos do livro, Lima Barreto lança mão da sátira, dotada de poderosa dose de ironia e sarcasmo, para denunciar as futilidades e os preconceitos que caracterizam as relações privadas das classes sociais dominantes. É desnudada a mesquinhez das elites brasileiras, bem como a excessiva afetação e a pobreza de espírito dos intelectuais da época. No aspecto cultural das letras e das artes, os bruzundanguenses (ou os brasileiros!) parecem então tomados pelo "complexo de vira-lata" (conforme cunharia mais tarde Nelson Rodrigues). Nesse sentido, Lima Barreto demonstra o quão ignorada era a originalidade dos artistas brasileiros, sempre desdenhados em sua potencialidade artística. Ao contrário, eram tidos por talentosos, sábios e eruditos os brasileiros copiadores da arte estrangeira, ainda mais se se expressassem por meio de uma linguagem hermética e incompreensível.
Em capítulo especial que inaugura a narrativa, intitulado "Os samoiedas", Lima Barreto destina sua crítica ácida aos poetas parnasianos que dominaram a cena literária brasileira no final do século XIX até aproximadamente 1922. "Os samoiedas", que na verdade constituem grupos étnicos que habitam ainda hoje a região da Sibéria, é a figura encontrada por Lima Barreto para representar, em alegoria, os poetas parnasianos, cujas obras são duramente criticadas pelo autor, face à sua linguagem obscura, hermética, excessivamente formalista e nada compreensível.
Por todos esses aspectos, o título da obra faz justiça ao povo da República da Bruzundanga, porquanto um dos possíveis significados encontrados no dicionário para o termo "bruzundanga" é o de "uma linguagem confusa ou incompreensível". Ora, seja no campo das artes dos bruzundangas, seja no campo da política, pululam atitudes confusas e até incompreensíveis de tão inacreditáveis.
É bem verdade que é possível perceber nas sátiras lançadas por Lima Barreto um sentimento de exclusão social do autor (escritor e intelectual negro do início do século XX), ou mesmo um ressentimento nutrido em relação a determinadas pessoas ou instituições daquela época (exs: Academia Brasileira de Letras, o ilustre Barão do Rio Branco, etc.). Contudo, a meu sentir, tais sentimentos pessoais em nada comprometem o conjunto da obra e a sua vocação para a reflexão acerca da evolução cultural e do estágio civilizacional em que se encontra o Brasil.
Boas leituras!