João Ks 15/06/2020
Fausto (Primeira parte) – Johann Wolfgang Von Goethe.
“Fausto” é a obra-prima de Goethe. É a obra de uma vida inteira, dado que o escritor alemão levou sessenta anos para concluí-la (1772-1832). Trata-se de um poema trágico. Redigida em versos, a história de Fausto vai sendo contada através de cenas.
Se o processo de composição da obra teve início ainda na juventude de Goethe, encerrando-se muito tempo depois à véspera de sua morte, é natural que a forma e o conteúdo da obra tenham absorvido a variedade de interesses, de valores e de estilos que acompanharam Goethe por toda sua vida.
Vale lembrar que o “Fausto” se desdobra em duas partes (Partes I e II), sendo que ambas guardam certa autonomia.
Nas palavras de Púchkin, “O Fausto é a maior criação do espírito poético e um representante da poesia mais moderna, exatamente como a Ilíada é um monumento da Antiguidade Clássica”.
É claro que um poema dessa envergadura carrega tantos e tão profundos significados, sempre capazes de provocar reflexões e sentimentos a cada novo verso, que merece ser lido mais de uma vez.
Para Otto Maria Carpeaux: “O itinerário do leitor, através das páginas de Fausto, parece-se com a subida pelas escadas de uma torre de uma catedral gótica: é uma escada estreita e às vezes perigosa, mas no alto abre-se o panorama imenso de uma paisagem nossa: do trabalho em liberdade pela ação social e do futuro do gênero humano”.
Assim sendo, ao leitor desavisado deve-se recomendar a entrega total à obra, com estado de espírito aberto e paciente, a fim de que os meandros do poema possam ser captados com proveito. É natural que a leitura de um ou de outro verso possa parecer truncada às vezes, seja porque faz referência a eventos datados, seja em função de seu caráter hermético, ou mesmo em razão dos limites que tradução impõe. Mas certamente isso não compromete o sentido geral que a tragédia impõe a cada nova cena.
Bom, mas o que se passa na história de Fausto?
As coisas começam a acontecer basicamente no “Prólogo no Céu”, quando Mefistófeles (um demônio) como que faz uma aposta com Deus (se é que Deus se rebaixaria a esse nível), afirmando que seduzirá Fausto e com ele firmará um pacto de sangue.
O próprio Mefistófeles assim se apresenta ao leitor: “Sou parte da Energia/Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria/ O gênio sou que sempre nega”.
Na primeira cena, intitulada “Noite”, adentramos num ambiente carregado: o quarto escuro, mau arejado e apinhado de livros, onde enfim conhecemos Fausto perdido em seus pensamentos. Essa cena é primordial, pois nela vislumbramos a profundidade da agonia de Fausto. Na condição de erudito, cientista, filósofo e estudioso dos mais variados campos do saber, Fausto alcança um estágio de exaustão intelectual e de franca decepção com a condição humana. Inconformado com os limites impostos ao homem pela mortalidade, aturdido pelo desespero em face do desconhecido, ansioso por revelar os mistérios do Universo, Fausto representa nesta cena a fragilidade do ser humano, capaz até mesmo de cogitar o suicídio como forma de romper os limites da existência.
É nesse contexto que Mefistófeles obtém êxito em firmar com Fausto um pacto de sangue, por meio do qual o protagonista se compromete a servir ao diabo na eternidade desde que obtenha em vida a saciedade de seus desejos e aspirações.
Firmado o pacto, Mefistófeles sai em jornada para apresentar a Fausto o “microcosmo” (o ser humano) e o “macrocosmo” (Universo).
Durante essa jornada, Mefistófeles oferece a Fausto o rejuvenescimento, a beleza física e a predisposição para a paixão, que serão necessários para o protagonista se encantar e conquistar Gretchen, a personagem-chave na tragédia amorosa que conduzirá a primeira parte do “Fausto”.
Antes do final trágico desta primeira parte, há a célebre cena da “Noite de Valpúrgis”, que consiste numa celebração realizada no Monte Broken, sempre em 31 de abril (um dia antes do dia de Santa Valpúrgis). Assim, a “Noite de Valpúrgis” constitui uma missa satânica para a qual aflui um sem número de bruxas, demônios e outros seres infernais, todos empenhados em ouvir o sermão de Satanás no cume do monte Broken. Não fica de fora dessa celebração toda sorte de orgias e de atos grotescos. Fausto é conduzido por Mefistófeles para a “Noite de Valpúrgis” a pretexto de livrar de seu pensamento a figura de Gretchen mediante a consumação de novas experiências.
Ao fim e ao cabo (ao menos nessa primeira parte da obra) parece que aquele Fausto transcendente que vemos na primeira cena (“Noite”), perdido em seus pensamentos e refém do desespero existencial, vai gradualmente se deixando levar pela “humana flutuação” que de início ele próprio abominava (“Oh, não me fales da vã multidão/ Cuja presença o gênio nos desgasta/Deixa-me oculta a humana flutuação/Que, ao seu remoinho, à força nos arrasta”).
É como se Fausto tivesse substituído aquela redoma intelectual e espiritual na qual se encontrava na primeira cena para imergir de cabeça no mundo terreno, experimentando na companhia de Mefisto as vicissitudes humanas, cujo ápice é a tragédia amorosa com Gretchen.
Enfim, a história é contada com primor nos versos de Goethe. E como todo grande clássico da literatura universal, constitui um grande espelho da condição humana.
Aliás, a edição da 34 é formidável, com excelentes tradução e comentários. Pra não falar das belas gravuras de Eugène Delacroix que ilustram as cenas!
Boas leituras!