Fabio Shiva 31/03/2024
TRISTE FIM DE UMA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA: “QUEIMEM OS LIVROS!”
Desde que decidi ler todos os volumes da Coleção Os Pensadores (ao menos da edição que tenho comigo), elegi antecipadamente alguns “favoritos”, que eu ansiava ler mais que os outros. E um desses era volume dedicado ao David Hume, que já havia conquistado a minha admiração por conta dos estudos de epistemologia na Faculdade de Comunicação Social da UERJ, na década de 1990.
Ocorre que Hume teve uma ideia sensacional, que acarretou grandes repercussões na filosofia e na construção do conhecimento científico desde então. Essa ideia, resumidamente, é a seguinte: as relações de causa e efeito que estabelecemos nos fenômenos na natureza são meras crenças e não possuem nenhuma veracidade intrínseca. Por exemplo, vemos a madeira queimando e, em seguida, vemos cinzas. Daí inferimos que toda madeira queimando se transforma em cinzas (ou seja, estabelecemos uma relação de causa e efeito). Mas daí chega o David Hume e diz: nada nos autoriza a supor que a natureza irá se repetir eternamente, por isso dizer que a madeira queimando se transforma em cinzas é simplesmente uma crença apoiada na experiência, mas não é um enunciado da verdade.
O impacto dessa ideia de Hume foi fulminante. Immanuel Kant, outro grandão da filosofia (cujo volume na coleção Os Pensadores espero ler em breve), chegou a dizer que “Hume o havia despertado de seu sono metafísico”. Só no século vinte (ou seja, trezentos anos depois de Hume) é que o desafio lançado por Hume pareceu ter encontrado uma resposta à altura em Karl Popper, filósofo que propôs que a ciência se fundamentasse a partir de “ideias falsificáveis”. Citando um exemplo famoso, a ciência deveria dizer que “todos os cisnes são brancos”, sendo que a existência de um único cisne negro “falsificaria” toda a teoria científica.
Tudo o que escrevi até aqui nessa resenha é o que me lembro dessas aulas na UERJ, que assisti há trinta anos. Fico feliz com minha memória, que dá conta também de minha expectativa ao finalmente travar contato direto com a obra mais famosa de David Hume, “Investigação Acerca do Entendimento Humano”. Contudo a leitura em si, se não chegou a ser uma decepção total, foi bastante frustrante. O livro inteiro parece girar em torno dessa única (e genial, sem dúvida) ideia de Hume, que a explora em todas as suas minúcias. Mas não encontrei outras ideias que me empolgassem da mesma forma, nem de longe. Poderia ter ficado com o resumo das aulas de epistemologia.
Mas longe de mim dizer que a leitura foi uma perda de tempo. Pude detectar nessa obra um elo importantíssimo na solidificação do que hoje considero um “ateísmo dogmático” nas ciências. Já falei sobre esse assunto em várias resenhas de livros de filosofia e ciência. De modo bem resumido: com o conhecimento de que dispomos hoje, não seria científico afirmar que “Deus existe”. Mas do mesmo modo não seria científico dizer o contrário, que “Deus não existe”. Contudo, o pensamento científico, progressivamente orientado pelo cunho materialista (ou fisicalista, como se tem afirmado mais recentemente, depois que as concepções estritamente materialistas foram detonadas pelas descobertas da Mecânica Quântica e afins), chegou ao “ponto cego” de afirmar que só é verdade o que é provado pela ciência, desconsiderando desdenhosamente tudo o que diz respeito à espiritualidade. E é assim que temos hoje uma ciência totalmente divorciada da sabedoria da espiritualidade e que, por partir do pressuposto de que “Deus não existe” e de que “a vida não tem sentido”, se permite enveredar por estudos que só aumentam a nossa capacidade de nos aniquilar mutuamente e ao planeta inteiro conosco, quando poderia estar dedicada à erradicação da fome, da miséria e da infelicidade no mundo...
O assunto é vasto e complexo, e não tenho a menor pretensão de cobri-lo em uma humilde resenha. Menciono aqui de passagem, como registro da importância que foi, para mim, descobrir como Hume foi um passo importante nessa incrível jornada de um trevoso dogmatismo religioso (vivido durante a Idade Média, com a Igreja ditando os saberes) para esse atual e comparativamente luminoso dogmatismo científico, que coloca em risco a nossa própria existência no planeta. Que Deus me dê saúde para testemunhar os próximos capítulos dessa fascinante novela humana!
Ainda sobre Hume, não posso deixar de registrar a minha consternação ao constatar que ele encerra a sua obra-prima afirmando enfaticamente que os livros escritos de forma contrária ao que ele prega deveriam ser sumariamente queimados:
“Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? (...) Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões.”
Penso que esse deve ser um dos finais mais tristes possíveis para uma obra de filosofia.
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2024/03/triste-fim-de-uma-investigacao.html
site: https://www.instagram.com/fabioshivaprosaepoesia/