Ana Paula 09/10/2021
O deus da perda
O deus das pequenas coisas é um livro sensível e profundo que retrata, a nível social, a dificuldade da superação prática de um sistema de castas secular na Índia, o fervilhamento de grupos identitários comunistas e a disputa de poder (luta de classes x manutenção do status quo + a perversidade do poder), o pós-colonialismo e o enraizamento da suposta superioridade do colonizador sobre o colonizado, entre outros. A nível mais intimista, o drama familiar envolvendo as expectativas de gênero e classe e as manifestações hierárquicas de poder e submissão que levam a um profundo ressentimento dos membros desta família, se manifestando de diversas formas, pequenos atos vingativos e punitivos para dissipar a própria frustração e dor (como observados em Baby Kochamma), a violência física e psicológica de Pappachi com Mammachi por sua própria decepção que simboliza a matriz emocional da família (a mariposa de Pappachi) e por sua reiteração de poder. Ainda, a submissão de Chacko diante do seu amor colonizado e sua fúria manipulável como mecanismo de direcionar seu luto, a impossibilidade de felicidade e amor (o destino cruel e imperativo) que leva há uma tragédia tão dramática (the point of no return), o conflito entre ser mulher e ser mãe, envolvendo aqueles questionamentos impronunciáveis que desglorizam e materializam a maternidade a sua realidade crua e, por vezes, perversa, entre muitos outros.
A narrativa segue um tempo psicológico e entrega pequenas pistas do desenrolar da história num fluxo incialmente caótico: primeiro você mergulha de cabeça na mais profunda água turbulenta da história e depois você é tirado da água e colocado a margem - mas, já está encharcado- e vai entrando na água novamente, centímetro a centímetro até voltar ao início em que se está completamente submerso. O narrador onisciente é fenomenal, uma das mais belas construções narrativas que já tive o prazer de ler, tudo é construído a minúcias, com muita poesia, muita reflexão crítica sobre si e sem perder o grande fio da história (que não é, como mencionei, uma linha reta, mas um zique-zague, um labirinto incialmente confuso que vai se desvelando ao leitor).
Apreciei especialmente a forma como o pensamento imaginativo das crianças, dos gêmeos -os grandes protagonistas, Rahel e Estha-, é incorporado sutilmente a narrativa, dando um peso, uma leveza e sobriedade profundas, explicando todo o sofrimento sob a ótica das crianças, de forma tão pura e tão dolorosamente percebemos a inocência sendo arrancada a forças de suas psique.
Ao terminar a leitura, a sensação que predomina em mim é o luto melancólico da perda, do deus das pequenas coisas, do deus da perda. Há o luto de Sophie Mol (o mais óbvio), o luto da inocência (mostrado de maneiras muitas vezes cruéis e nauseantes), o luto do amor não vivido, o luto da nossa pequenez, o luto de tudo aquilo que sonhávamos para nós e nos foi tirado - simplesmente porque somos pequenos e insignificantes, o luto das ideologias que se esfarelam na prática, o luto da maternidade (uma vez mãe, para sempre mãe e há uma perda nesse novo "status"), o luto pela incompreensão e pelo que poderia ser se não fosse tudo aquilo que nos prende ao chão.
"Talvez seja verdade que as coisas podem mudar em um dia. Que apenas doze horas podem alterar a trajetória de uma vida inteira (...) Pequenos acontecimentos, coisas triviais, esmigalhados, reconstituídos. Revestidos de novos significados - de repente eles se tornam os descarnados de uma história."