Fred Fontes 02/06/2013
Arte que nasce nos esgotos de Paris
Henry Miller escreveu Trópico de Câncer no período de 1930 a 1934. Com a ajuda de Anaïs Nin, teve a obra publicada imediatamente em Paris. Contudo, só viu seu livro publicado nos Estados Unidos, sua terra Natal, em 1961, quase três décadas mais tarde.
Essa talvez seja a espera necessária para que um paradigma seja quebrado. E Miller quebrou mesmo um paradigma. Costumo dizer que meu critério para diferenciar um grande escritor de um escritor apenas popular é a inovação. É fácil reproduzir fórmulas e escrever o que já foi escrito antes. Por mais trabalhosa que seja uma eventual rearrumação de velhas frases, velhos roteiros e velhas tramas, escrever "mais do mesmo" não faz de um escritor alguém que valha a pena ser lido, e nem lembrado anos ou séculos mais tarde. Escrever algo novo, ainda que num estilo conhecido e consagrado, já permite termos diante de nós um escritor que mereça ser lido. Todavia, escrever algo novo e num estilo novo, ou ainda, escrever de uma forma considerada até então impossível, imprópria, proibida, inadmissível, é arriscar-se, é demonstrar coragem e comprometimento com a arte. Miller esperou, talvez sem pressa, o tempo necessário para que o público aprendesse, compreendesse sua arte, sua obra de arte. Aquele novo estilo teve seguidores como Charles Bukowski e Jack Kerouac.
Trópico de Câncer não é para principiantes. Nem para estômagos sensíveis. Almas não preparadas verão ali talvez apenas o relato jornalístico de uma vida mundana, crua, sangrenta, pestilenta, sifilítica. Verão também pornografia, sujeira, bebedeira e sarjetas cheias de ratos. O leitor sensível, porém, verá o surgimento de um novo gênero literário, um pós-naturalismo, um além-do-naturalismo. E vai além da bebida e do sexo.
Um de seus personagens, Van Norden, é um escritor frustrado que sonha em escrever o livro perfeito. A perfeição, no caso, seria escrever algo "absolutamente original", que não invadisse a propriedade privada de escritores anteriores, conforme ele mesmo explicava. Talvez tenha sido justamente o que Miller acabou fazendo.
A confusão com a pornografia é lugar-comum quando se fala da obra de Henry Miller, mas este, numa passagem do livro, dá sua opinião sobre o sexo. E essa opinião surpreende e contradiz a idéia geral que se tem do autor: "Enquanto estiver faltando aquela centelha de paixão, não há significação humana no ato."
Numa outra interessante passagem, fala da imunidade adquirida pelo jornalista ante as doenças do mundo, imunidade que atribui também a advogados, médicos, padres e políticos. "Esses são os charlatães que têm os dedos no pulso do mundo [...] Sentado em meu pequeno nicho, todos os venenos que o mundo solta diariamente passam por minhas mãos. Nem sequer a unha de um dedo fica manchada. Estou absolutamente imunizado."
Trópico de Câncer fala da Paris dos loucos anos 20, a mesma Paris para a qual Woody Allen sonhou poder transportar-se à meia-noite. Nem ele e nem nós estamos imunes à arte que transbordava dos esgotos da cidade-luz, e cujo perfume levou algumas décadas para ser percebido por nossas narinas.
Leitura obrigatória para quem deseja expandir seus horizontes literários.