Paulo 14/02/2021
Martírio
Martírio não só o que o eu lírico sofre, mas o leitor também. Não pelo conteúdo ou pela qualidade, claro, pelo contrário: pelo excesso dela, o que torna a leitura difícil, em grande parte maçante, fatigante por sua complexa elaboração e por isso irritante, mas também intrigante, todas essas qualificações atribuo também a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e a qualquer coletânea de Cláudio Manoel da Costa, embora eu só tenha lido uma. Castro Alves quase entra para essa lista, contudo, apesar de seu rebuscamento, sua poesia tem uma beleza encantadora, tanto que já reli seu Espumas Flutuantes. Em comum com Castro Alves, Álvares de Azevedo teve também a morte precoce e legada com a magnificência de sua obra, apesar da pouca idade. Castro publicou “Espumas Flutuantes” e menos de um ano depois morreu, em 1871, aos vinte e quatro anos, Álvares morreu em 1852 aos vinte anos, teve “Lira dos Vintes Anos” e “Noite na Taverna” publicadas postumamente, é incrível que tão jovens assim tenham publicado obras marcantes para a literatura brasileira e de tanta excelência.
Assim como Marília de Dirceu, de Gonzaga, Lira dos Vinte Anos é dividida em três partes, no entanto, diz-se que o autor pretendeu originalmente que tivesse duas partes, não sei se se contesta a autoria da terceira parte, como é o caso em Marília. O tema e ou a emoção das duas primeiras partes dessas obras dos dois autores também se assemelham, apesar de séculos e, claro, escolas diferentes (Gonzaga era originalmente do arcadismo, embora Marília é tida como já tendo elementos do romantismo, Álvares era do ultrraromantismo, segunda geração do romantismo). Na primeira parte, ambos falam da mulher ideal, do amor profundo que sentem por ela e o qual é sua única razão de viver. Na segunda parte, a temática é mais sombria; no caso de Lira, Álvares aborda a morte do poeta, que ironicamente viria a ocorrer em breve, fala do desprezo que os poetas e trovadores sofrem enquanto espécies de vagabundos, mas ele aborda também outros temas, versifica uma peça de teatro cômica e incômoda, escreve sobre seu candeeiro e conta histórias em decassílabos ou em outras métricas variadas, mas tudo metrificado e rimado, às vezes sem rima, mas sempre metrificado. Como é que se consegue contar histórias em versos com uma métrica?
A primeira parte, a romântica de fato, é a mais cansativa e maçante. A segunda é minha preferida, adorei os lamentos pelos poetas, a soturnidade, as histórias, não que alguns tantos poemas não sejam difíceis e então cansativos de ler. A terceira parte é anunciada no prefácio como um retorno à primeira (mais uma vez, como em Marília de Dirceu), é a única em que Álvares não fez sua própria breve apresentação, e ela, na verdade, aborda vários temas, o que prevalece me parece que é mesmo a donzela, há de fato esse retorno, mas aborda também temas da segunda parte, que por si só, como dito, são variados, existe, por exemplo, um poema em que alguém avista o vulto de Don Juan e que o ouve cantar, e o que se segue são dezenas de versos que são a letra da canção de Don Juan. Me identifiquei de uma forma catártica com alguns poemas da segunda e terceira parte.
Demorei quase um mês para terminar esse martírio. Quanto a essa edição da Escala, é horrível, a capa é horrível, a foto miniatura de Álvares é toda pixelada, a revisão é grotesca logo na primeira orelha, me perguntei o que estava fazendo a revisora na hora de revisar. Ao postar no Facebook sobre os erros da primeira orelha, um amigo que já trabalhou em livrarias e já teve seu próprio sebo me advertiu: “fuja da Escala”.