Alyne 05/06/2015
Moderno Prometeu
É incrível ler você mesmo uma estória clássica e tirar suas próprias conclusões. Essa obra relaciona o universo científico da época com as concepções vigentes ali, englobando conflitos internos, metalinguagem e debate filosófico. Nunca que vai ser a estorinha de terror que você escutou por aí. Tenho a impressão de que todos falam dela como se a conhecessem pelo mito do monstrengo construído por um cientista maluco envolvido em muitas aventuras alucinantes -- corta, sessão da tarde -- enfim, tenho essa impressão reforçada depois dos comentários que ouvi das pessoas que me viam lendo esse livro. Esqueça de todas essas adaptações. Será que agora você não poderia sair da concepção simplória e condensada que faz os clássicos serem adaptados para livros infantis (o que é completamente válido, sem dúvidas) e buscar compreender sua enigmática original para conhecê-la de verdade?
O título do livro "Frankenstein ou Prometeu Moderno" foi dado pela pretensão de recontar o mito grego de Prometeu, um titã defensor da humanidade, que rouba o fogo sagrado pertencente aos deuses do Olimpo para permitir a supremacia dos homens sobre os seres vivos. Zeus puniu Prometeu, decretando que ele fosse preso em correntes junto ao alto do monte Cáucaso por 30 mil anos, durante os quais ele seria diariamente bicado por uma águia que lhe destruiria o fígado. Como Prometeu era imortal, seu órgão se regenerava constantemente e o ciclo destrutivo se reiniciava a cada dia. Uma obra artística bacana que ilustra isso é "Prometheus chained by Vulcan", de Dirck van Baburen.
O mais legal é como esse clássico surgiu: em um dado verão os Shelley estavam com os amigos Lord Byron e John Polidori numa tarde chuvosa e, como quem está entediado, Lord Byron sugeriu um desafio: quem seria capaz de escrever a melhor estória de terror. Foi nesse dia que Mary começou a desenvolver o conceito de Frankenstein. O mote do romance é a soberba e imprudência ambição de Victor Frankenstein pelo conhecimento.
Desde as primeiras páginas acompanhamos, através de cartas, a maneira como Victor era fascinado pelo mundo ao seu redor, pela ciência experimental e a grande satisfação que ele sentia quando conseguia adquirir todo o conhecimento e colocá-lo em prática. Nessa primeira fase, o conhecimento desempenha seu papel primário, que é o de libertar e de mostrar a verdade. Mas isso não dura muito tempo, como todos já sabem. Frankenstein recolhe restos animais da região e mortais do cemitério, uma das partes que se encaixa no gênero "terror", além das obviedades como o castelo, os raios e o suspense. Outros elementos não tão óbvios na escrita descritiva da natureza e dos ambientes sombrios dada pelo estilo gótico também colaboram para a força trágica da trama. Viktor, sozinho, dá vida à sua criação com um forte sentimento de imponência -- ele se sente Deus. A criatura nunca é nomeada, Victor o chama de ser maldito, demônio e simplesmente monstro.
Um dos pontos mais altos e que mais comunicam a ideia central da autora como um todo é quando Frankenstein dá vida ao monstro e fica completamente atônito e em verdadeiro estado de choque não só com a percepção da "coisa" que acabara de criar, mas com seus próprios demônios pessoais, graças a essa eterna insatisfação ambiciosa que nós, humanos, temos. Victor foge e isso desencadeia um dos acontecimentos mais épicos e um dos melhores diálogos do livro: o primeiro encontro do criador e da criatura.
Algumas das muitas questões levantadas pelo livro têm relação com a nossa identidade (quem nós somos? o que nos faz humanos, parecidos com Deus ou com um monstro? com quem nos aliamos e de quem buscamos aceitação, de todos os tipos de criadores como nossos pais, de Deus ou de nós mesmos?). Muito também é dito através das próprias descobertas do monstro como uma criatura que se encontra num estado perpétuo de solidão e de isolamento, aprendendo sobre a humanidade, lendo seus livros, observando seus hábitos mas nunca sendo permitido a se relacionar e a expor a ternura que sentia, o que se dá pela sua natureza grotesca, repudiada pelos seres humanos (belos, perfeitos e complexos). Será que a linguagem e a comunicação são dons restritos a nós? Na estória, a criatura aprende a falar nossa língua e ela não é humana. Será que podemos nos sentir "superiores" por conseguirmos formular algumas frases? Será que temos mais direito sobre a Terra do que qualquer outro ser? Nós somos nascidos dentro do pecado? É a nossa sina? Estamos aqui para sofrer? É melhor expressar nossa dor com palavras ou sofrer em silêncio? Deus nos abandonou? Tentamos ser como nosso criador mas buscamos refúgio em nós mesmos? Ou em outras criaturas? E se não existissem outras criaturas como você? E se até seu criador te rejeitasse?
Ainda, será que devemos nos proteger do que queremos?
Enquanto lia, me deparei com tantas indagações que não conseguia parar de carregar o livro pra um lado e pro outro. O fato de os dois personagens -- Frankenstein e o monstro -- terem em si aspectos de Prometeus não é surpresa alguma se pararmos pra pensar que até o próprio Prometeus é ambíguo. Não se trata de um titã que ajuda a humanidade?
Frankenstein se sente como Deus e como Satã, um na criação, outro como criatura:
"All my speculations and hopes are as nothing, and like the archangel who aspired to omnipotence, I am chained in an eternal hell. My imagination was vivid, yet my powers of analysis and application were intense; by the union of these qualities I conceived the idea and executed the creation of a man."
O monstro também se identifica com tal dualidade de se sentir como Deus e como Satã ao mesmo tempo, um pela sua força onipotente, outro como criatura:
"Remember that I am thy creature; I ought to be thy Adam, but I am rather the fallen angel, whom thou drivest from joy for no misdeed. Everywhere I see bliss, from which I alone am irrevocably excluded. I was benevolent and good; misery made me a fiend."
Essa é uma interpretação radical de um dos livros que o monstro leu durante sua existência (Paraíso Perdido de John Milton), que reconta de forma poética a queda do homem. A criatura parece querer dizer que Adão caiu por vontade própria ao cometer um pecado fatal, enquanto Satã já estava pra cair do céu como parte intrínseca do plano de Deus e suas criações. Assim, ele diz que deveria ser Adão pois é o que faria sentido e é a atitude esperada de seu criador, mas que nunca foi e nunca será Adão e sim um ser obscuro que já tinha sua natureza amaldiçoada planejada. Egoísmo? Satisfação própria? Apesar de notar a alegria em todos os lugares, não lhe é permitido senti-la e então não lhe é concedido um motivo para viver ou para ser uma criatura benéfica, por mais que ele queira.
Esse livro, sem sombra de dúvidas, é um dos livros mais importantes da minha vida. Se eu falasse que chorei lendo esse livro ninguém acreditaria, não faria sentido. Mas é verdade. Espero que todos, um dia, tenham a oportunidade de ler Frankenstein e pensar sobre tudo que esse livro debate com uma escrita maravilhosa e que me deixou com muita saudade depois de terminar a leitura. Fiquei umas 2 semanas sem ler nada por não querer sair desse mundo e enrolei demais nas últimas páginas pra que não acabasse logo.