Ronnie K. 03/08/2009
Coincidências para queimar o coração
Verídicas ou nem tanto, pouca importa. Os breves relatos autobiográficos apresentados por Paul Auster nesse brilhante livreto emocionam, encantam ou assustam de qualquer jeito. São narrativas onde o centro das tramas, o que as move, é mais do que tudo o imprevisível acaso, as coincidências, os lance de sorte e de azar. Auster faz uma espécie de jogo com a trama. Alinhava fios aprentemente soltos no tempo, fios à primeira vista absolutamente incompatíveis um com o outro, para de forma surpreendente e reluzente fazê-los se unirem no desfecho, dando um significado 'milagoroso' para cenas banais do cotidiano. A magia das narrativas está justamente nesse ponto: são imprevisíveis, não se sabe para que desfecho nos levarão, lê-se cada palavra, cada linha, com os sentidos em alerta, em suspenso, para invariavelmente se emitir um suspiro de emoção, de susto ou de alívio no final. Isso ocorre sobretudo nas duas primeiras e mais longas narrativas, as quais já valem o livro todo. Não apenas isso. São tão intensas que se pode ficar a se perguntar como relatos tão breves podem ser carregados de tanta emoção! Tudo em um estilo límpido da sempre fluente prosa de Auster. As narrativas perdem um pouco o folêgo e o peso nas duas partes finais (soam quase como forçação de barra para encorpar o volume, não possuem, a meu ver, a autenticidade da parte inicial); felizmente, são as menores, menos de um terço do conjunto. Além do mais, já se chega a esse ponto tão enlevado pelos 'causos' narrados na parte inicial que quase não se percebe isso. Livro obrigatório!
TRECHO:
"Eu já tinha mais ou menos terminado o trabalho de limpeza quando minha filha saiu correndo de seu quarto no segundo andar rumo ao patamar da escada. Eu me encontrava perto o bastante do pé da escada para vê-la de relance (uns dois passos para trás e ela teria ficado fora do meu campo de visão) e, naquele breve momento, vi que ela estava com aquela expressão animada, completamente feliz, que encheu minha meia-idade de uma alegria irresistível. Então, um instante depois, antes que eu sequer pudesse dizer olá, ela tropeçou. A ponta do seu tênis prendeu no patamar da escada e, de repente, sem nenhum grito ou aviso, ela estava flutuando no ar. Não estou querendo sugerir que ela estivesse caindo, rolando ou descendo a escada aos trombolhões. Quero dizer que ela estava voando. O impacto da topada simplemente a lançou no espaço, e pela trajetória do seu voo pude ver que ela rumava direto para a janela."