Carina 13/09/2013
Orgias bem-comportadas
Por ser uma coletânea de textos já publicados de Luis Fernando Verissimo, algumas das crônicas são bastante batidas (foram inclusas em vários dos outros livros do autor e passam longe do ineditismo). No entanto, apesar da vasta produção do escritor, a impressão que fica é que faltaram textos sobre sexo e incluíram qualquer crônica vagamente relacionada com orgias para preencher espaço.
Há vários textos sobre festas infantis de aniversário (que, mesmo marcadas pelo improviso, desespero e algazarra, não têm - habitualmente, espero - o cunho sexual que caracteriza um bom bacanal). Outras crônicas versam sobre o ano novo e o Carnaval, e raros textos vão direto ao ponto G - as orgias propriamente ditas.
Grande parte da seleção se compõe de peças bem escritas, mas invariavelmente mal finalizadas - já que, com a produção intensa, nem sempre Verissimo consegue manter a qualidade. Contudo, ainda que não seja tão picante quanto o esperado, é uma leitura agradável.
TRECHOS:
Cada ano novo é como uma folha de papel em branco à sua frente. Você pode fazer o que quiser com ela. Pode traçar novas coordenadas para sua vida com o lápis (nr. 2) da sabedoria, a régua da experiência e o esquadro da razão — e, se for preciso, a borracha do arrependimento —, ou pode apenas rabiscar frases inconseqüentes ("Tem homem que bota a mulher num pedestal para poder olhar por baixo do seu vestido"), desenhar bonecos pelados ou simplesmente dobrar o papel, fazer um aviãozinho e jogar pela janela. Depende somente de você. A vida é sua. Aproveite esta oportunidade que o ano novo nos dá para reexaminarmos o mapa da nossa existência e corrigirmos o nosso curso a fim de não encalharmos, irreversivelmente, nos rochedos da desilusão. A minha primeira resolução para 2006, por exemplo, é nunca mais escrever nada que contenha a frase "rochedos da desilusão".
***
Estive fazendo um levantamento íntimo para saber quantas das minhas resoluções para 2005, feitas no fim de 2004, consegui cumprir. (...) Eram resoluções modestas e sensatas. Por exemplo: Fazer regime. Consegui. Fiz vários durante o ano. Comecei dietas para emagrecer todas as segundas-feiras e se a dieta nunca passou do almoço da terça-feira a culpa não foi minha.
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Você reconhece quem teve uma festa de criança em casa no dia anterior. Alguma coisa no rosto. A expressão de quem chegou à terrível conclusão de que Herodes talvez tivesse razão.
— Que respiração ofegante o senhor tem!
— Foi de tanto encher balão.
— Que dificuldade o senhor tem para caminhar!
— Foi de tanto levar canelada tentando apartar briga.
— Como as suas mãos estão trêmulas!
— Foi de tanto me controlar para não esgoelar ninguém! Respeito e consideração para quem teve uma festa de criança em casa no dia anterior.
O pai e a mãe estão atirados num sofá, um para cada lado. Se-miconscientes. Já é noite, mas a festa ainda não acabou. Sobram três crianças que não param de correr pela casa.
— Tenho uma idéia — diz o pai.
— Qual é?
— Vamos mandar eles brincarem no meio da rua. Esta hora tem bastante movimento.
— Não seja malvado. Daqui a pouco eles vão embora.
— Quando? Essas três foram as primeiras a chegar. Acho que os pais deixaram elas aqui e fugiram para o exterior.
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No começo era eu. Só eu. Eu eu eu eu eu eu. Não existia nem a segunda pessoa do singular, porque eu não podia chamar Deus de "tu". Tinha que chamá-lo de "Senhor". Não existia "ele". Não existia "nós". Nem "vós". Nem "eles". Só existia eu. Eu, eu, eu, eu. Não é que eu fosse um egocêntrico. E que não havia alternativa!
Eu não podia pensar nos outros porque não havia outros. O mundo era uma gramática em branco. Só havia eu e todos os verbos eram na primeira pessoa. Eu abri os olhos. Eu olhei em volta. Eu vi que estava num Paraíso (do grego paradeisos, um jardim de prazeres, ou do persa paridaiza, o parque de um nobre, mas isso só se soube depois). Eu perguntei "O que devo fazer, Senhor?", e Deus respondeu "Nada, apenas exista". E eu fui tomado pelo tédio. A primeira sensação humana.
E Deus viu que eu me entediava, pois do que vale ser um nobre no seu parque se não existem os outros para nos invejar? E então Deus, que já tinha criado o tempo, criou o passatempo, e me encarregou de dar nome às coisas. Eu vi a uva, e a chamei de parmatursa. Eu vi a pedra e a chamei de cremílsica, e ao pavão chamei de gongromardélio, e ao rio chamei de... Mas Deus me mandou parar e disse que cuidaria daquilo, e me instruiu a procurar o que fazer enquanto terminava de criar o Universo, pois os anéis de Saturno ainda estavam lhe dando trabalho. E eu me rebelei e perguntei "Fazer o quê?", e viu Deus que, além do Homem, tinha criado um problema.
E perguntou Deus o que eu queria, e eu respondi: "Sabe que eu não sei?" E Deus disse que tinha me dado uma vida sem fim, e um jardim de prazeres digno de um nobre persa para viver minha vida sem fim, e frutas e peixes e pássaros de graça e dentes para comê-los, e mel de sobremesa, e que eu esperasse para ver que espetáculo, que show, seria o Universo quando ficasse pronto. Tudo para mim. Só para mim. E não bastava? Não bastava. "Eu pedi para nascer, pedi?", disse eu. E Deus suspirou, criando o vento. E pensou: "Filho único é fogo".
(...)
E Deus fez a minha vontade, e me pôs a dormir, e quando acordei tinha um irmão ao meu lado, tirado do meu lado. Igual a mim em todos os aspectos. Espera aí, em todos não. Deus, com a cabeça em Saturno, não prestara atenção no que fazia e errara a cópia. Colocara coisas que eu não tinha e esquecera coisas que eu tinha, como o pênis, que se dependesse de mim se chamaria Obozodão. Deus se ofereceu para recolher a cópia defeituosa e fazer uma certa, mas eu disse "Na-na-não, pode deixar". Pois tinha visto que era bom. Ou boa. E fui tomado de amor pelo outro. A segunda sensação humana.
Ela era o meu tu, eu era o tu dela. Juntos, inauguramos vários verbos que estão em uso até hoje. E eu a chamei de Altimanara, mas Deus vetou e lhe deu outro nome. E quando ela perguntou como era o meu nome, respondi "Mastortônio", mas Deus limpou a garganta, inventando o trovão, e disse que não era não. Ficou Adão e Eva (eu Adão, ela Eva) aos olhos do Senhor e na História oficial mas em segredo, isto pouca gente sabe, nos chamávamos de Titinha e Totonho. E foi ela que disse "Totonho, quero que tu me conheças mais a fundo". E eu: "No sentido bíblico?" E ela: "Existe outro?" E inauguramos outro verbo.