Tetynho 16/09/2024
CHEIRO DE ARISTOCRACIA
A primeira edição do livro ?Do Espírito das Leis? foi publicada em 1748. Ele já foi analisado por inúmeros filósofos e operadores do direito muito mais qualificados do que eu; portanto, qualquer tipo de análise ou resumo seria, no mínimo, enfadonho. Gostaria de deixar parcialmente de lado qualquer tipo de análise acerca da centralidade da obra, tendo em vista que sua principal contribuição é a divisão tripartida dos poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo.
Para tentar contribuir, mesmo que minimamente, acredito ser importante analisar a obra sob a ótica além da filosofia do direito. Durante toda a leitura, o ?cheiro? de aristocracia é muito forte, o que não poderia ser diferente, pois o autor fazia parte de uma família aristocrática. Portanto, sua visão de mundo e sua análise da realidade partiam de um ponto de vista muito específico.
É interessante notar como suas ideias representavam os pensamentos da classe dominante da época. Isso fica evidente durante toda a leitura, mas principalmente quando o autor descreve qualquer aspecto referente ao continente asiático ou aos negros, de qualquer parte do globo. Montesquieu chega ao ponto de dedicar um capítulo inteiro à defesa da escravidão dos negros. Além disso, ele afirma que os povos asiáticos estão mais propensos a governos despóticos devido à natureza intrínseca dos orientais.
Obviamente, essas ideias, que hoje consideramos extremamente preconceituosas, não eram exclusivas do autor, mas não deixa de ser absurdo pensar como isso ia além do senso comum, sendo considerado ciência na época. Fica evidente durante a leitura que Montesquieu rejeitava diversas formas de preconceito; ele se considerava uma pessoa isenta e imparcial em suas reflexões, apenas relatando o que observava de forma científica. Será que existe mesmo imparcialidade na ciência?
Podemos ir mais a fundo no pensamento do filósofo e constatar que seu preconceito encontrava respaldo na teoria do determinismo geográfico. É difícil explicar de forma mais rebuscada essa teoria, pois sua integralidade é tosca e vazia de sentido. Resumidamente, os povos europeus, devido ao frio, tinham o sangue fluindo de forma a proporcionar mais coragem e outras qualidades, enquanto os orientais, devido ao clima quente, transpiravam mais, tornando seu espírito mais fraco. Faz algum sentido? Nenhum, mas até hoje encontramos pessoas adeptas dessa linha de pensamento, inclusive alguns deputados.
Ainda sobre a visão do mundo aristocrática de Montesquieu, preciso destacar algo muitíssimo interessante que provavelmente serviu, se não de base, ao menos de inspiração para a teoria americana do Destino Manifesto.
Vejamos:
?Quando as nações civilizadas são as senhoras do mundo, o ouro e a prata aumentam todos os dias, seja porque os extraem de seus próprios territórios, sejam porque os tenham buscado onde eles se acham. Diminuem, ao contrário, quando as nações bárbaras predominam. Sabe-se qual foi a escassez desses metais quando os godos e os vândalos, de um lado, e os sarracenos e os tártaros, de outro, tudo invadiram.?
Acredito não ser necessário dizer quais povos ele considerava bárbaros, qualquer um minimante diferente dos franceses. Por qual motivo será que as ?nações civilizadas?, ?as senhoras do mundo?, aumentam os seus estoques de ouro e prata? Será que existe alguma correlação com a escravidão e colonialismo?
Um pensador e filósofo guiado pelo Iluminismo não poderia justificar as atrocidades de seu povo, de sua nação, por um viés moral, mas através da ciência e de uma visão meritocrática baseada em uma suposta razão, poderia expiar os pecados de um povo, fazê-lo continuar, sem medo de, no pós-vida, explicar ao seu Deus a razão de tudo aquilo. Sim, Montesquieu era cristão e acreditava que todas as outras religiões eram falsas. Em dado momento, ele se esqueceu de sua posição imparcial e literalmente usou o termo ?falsas religiões?.
Mesmo com tudo isso, a leitura não deixa de ser fundamental. Aos advogados, filósofos, sociólogos e qualquer um que deseje saber como alguns princípios do direito ocidental funcionam, ou para um curioso que deseja entender o pensamento de um aristocrata do século XVIII ? e do XXI também, já que as famílias são as mesmas ?, a obra de Montesquieu é imprescindível.