Bruno Oliveira 08/01/2014Algumas impressões sobre Memórias do cárcereSempre considerei Graciliano Ramos um escritor difícil: suas palavras duras e retilíneas expressavam pensamentos sem curvas nem beleza, que sem me causar qualquer empatia, retratavam “coisas” viscerais, todavia, mesmo hoje, depois de terminar meu terceiro livro dele, continuo sem saber exatamente que coisas eram essas. Honestamente, não sei ao certo o que aprendi com Graciliano Ramos e ignoro se gosto do que ele escreve ou não, se me reconheço em alguma coisa do que diz, se são interessantes os seus livros, sua falta de encantamento com o mundo, ignoro tudo isso; sei apenas que quero saber mais de suas obras e que há algo de fascinante em sua prosa ou em sua pessoa que me seduz, mesmo que eu não possa entendê-la bem
A primeira impressão que tive ao ler Memórias do cárcere foi que mesmo num livro autobiográfico Graciliano era tão árido quanto nos seus livros de ficção. Assim, suponho que não exista em sua literatura uma diferença significativa entre sua produção como romancista-novelista, e sua escrita no tocante àquilo que seja diferente disso. Contrariando todas as receitas prontas de nossos manuais de redação, Graciliano escreve um romance tal como escreveria uma carta, um relatório ou poema, uma vez que ele não é um escritor compondo obras literárias mas é ele próprio sua literatura, é sua pessoa e não uma figura literária e imaginativa que surge em São Bernardo, Vidas Secas ou qualquer outro.
Minha segunda impressão foi notar a forte concretude dos personagens descritos, melhor dizendo, a maneira como eram tecidos sem que para tal se recorresse a elementos psicológicos ou conceituais que explicassem uma pessoa através de recursos predominantemente intelectuais. Todos os “personagens” da obra são apresentados sem que haja grandes divagações a respeito do que pensam ou de como se constituem internamente. Graciliano evita abstrações e tentativas de adentrar no mundo dos conceitos para assim explicar o mundo concreto, na verdade, aí reside um dos aspectos mais complexos do livro: o fato de que ele jamais sai dessa concretude infeliz e sórdida. Por sinal, mesmo quando o autor faz alusão à literatura, que poderia ser o espaço o espaço da imaginação e da liberdade, ela jamais aparece como um momento de desprendimento do mundo – nunca há desprendimento; apenas o contato frio e constante com as coisas do mundo, que não respeitam nossa interioridade e agridem-nos todo o tempo com sua insistência em existir.
Enquanto Machado ou Clarice, por exemplo, divagam, fogem e voltam ao mundo segundo seus humores para lhe observar segundo um novo ângulo descoberto fora da realidade imediata, Graciliano mal usa palavra “mundo” já que ela parece indicar um limite entre o que existe e o que pode existir, entre o real e o possível. Em suas retinas castigadas as coisas simplesmente são e estão, sendo fútil o questionamento a respeito de como poderiam ser, ou qual “deveria” ser “nossa” postura perante os fatos. Não há possibilidades, não há esperança e nenhuma coisa tem valor senão por aquilo que é. Para esse alagoano triste, impera o determinismo agressivo e mortificante do dia a dia.
Se me expressei suficientemente, devemos conceder que esse deve ser, talvez, o livro mais ateísta do mundo.
Essa concretude absoluta em que Memórias do cárcere está produz algumas características notáveis na escrita. A princípio, as cenas em que o autor descreve suas sensações (sobretudo o nojo), por exemplo, são poderosíssimas e viscerais. Ser literal, nada mais que literal dá muito poder às descrições de um negro coçando seus testículos, ou da comida ensebada das prisões de Getúlio Vargas, sendo que essa nudez literária é mais forte que qualquer tergiversação ou recurso de estilo que o autor pudesse empregar. Ademais, isso permite ao escritor aborda temas sociais sem recair numa visão científica ou filosófica do assunto, como se poderia esperar em algum momento, que produz resultados que parecem simples e óbvios, mas que jamais chegaríamos por nós mesmos – estamos intoxicados por demais de teorias e discursos prontos, ao passo que em sua escrita há uma visão das desgraças que vem diretamente de uma experiência sentida nas profundezas da pele, daquilo que ele e o leitor podem confirmar apenas respirando, sentindo o cheiro do sangue e do pó espalhados no ar, o escândalo faceiro diante de nós. A exemplo disso, a parte dedicada ao ladrão Gaúcho é ótima, pois Graciliano nunca olha seus personagens a partir do conforto do conceito, por conseguinte, vê e ouve naquele momento um sujeito que pratica ações condenáveis, que não se enxerga longe dessa vida e a vive sem remorsos, de uma maneira que nós, que temos tanto orgulho de nossa cultura, jamais poderíamos: como um ser humano igual a si mesmo e aos demais, outra vida se agitando debaixo da bota do tempo, fazendo aquele imenso esforço para existir e gozar que, por si só, já contém alguma dignidade.
Por fim, tenho a impressão de existir certa semelhança entre a escrita de Graciliano e de Camus. Pensando bem, creio que ambos se situam num tipo de pessimismo que antecede qualquer valor, seja moral ou intelectual e contamina os seus corpos, com efeito, malgrado possa ser interessante, nunca é plenamente agradável ler qualquer um dos dois: são anomalias literárias que não escondem seu caráter aberrante. Como diria Carpeaux, o alagoano é: ”o maior pessimista dessa literatura de pessimistas que é a brasileira”. Quanto a Memórias do cárcere, sinto que o expediente do livro é como um passeio num museu repleto de molduras vazias, de espaços ocos nos quais esperamos encontrar beleza e beleza ali não há; mas o vazio está lá escancarado, a ausência é perceptível e somente nos movendo por essa falta, por essa precariedade absoluta é que podemos ir de encontro ao autor. É lindo, e profundamente deprimente de um modo que não inventaram ainda uma palavra que abarque como.
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