Leonardo 31/12/2012
Grande história de dois sobreviventes
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com/
O livro do ano para mim foi Beatriz e Virgílio, de Yann Martel. Quando vi que A vida de Pi estava chegando aos cinemas (já em dezembro), apressei-me para ler o livro antes de conferir a película. Estava, naturalmente, com o gosto de Beatriz e Virgílio na boca, e apesar de o estilo de Yann Martel ser identificável (um ponto claro em comum nos dois livros é a presença do personagem escritor, que parece não fazer nada além de esbarrar com as histórias que ele acaba contando meio que por obrigação), o clima é bem diferente.
A Vida de Pi realmente parece ter por objetivo fazer você acreditar em Deus. Quase metade do livro mostra a vida de Pi fora do mar, ainda no zoológico, buscando sua fé, e aí está uma diferença considerável em relação ao filme. Pi é um menino/adolescente que cresce com uma grande sede de Deus. Em meio à pluralidade religiosa que experimenta na Índia, Pi não é um colecionador de religiões. Ele busca Deus com o coração sincero. Esse pano de fundo é fundamental para compreendermos a maneira como Pi encara a tragédia e os 227 dias no mar.
Lá, no barco salva-vidas, sentimos realmente o tempo passar. A história não é contada de maneira cronológica, já que Pi perde a noção do tempo (nada de marcar o passar dos dias no barco, como mostrado no filme). Os 227 dias demoram a passar. Quando pensamos que já está chegando ao final da jornada, uma memória que parece ser dos primeiros dois, três meses como náufrago vem à tona e sentimos o peso de estar à deriva no mar, ao lado de um tigre.
O “relacionamento” com o Richard Parker é construído, e apesar de a situação beirar o inacreditável, o escritor se esforça ao máximo para não cruzar alguns limites e deixar-nos sempre na dúvida: isso seria realmente possível?
Assim, nada de Richard Parker repousar sua enorme cabeça de tigre no colo magro de Pi.
A jornada não é idílica como algumas cenas do filme deixam transparecer. Apesar de Pi ter visto maravilhas, o livro é sobre como um homem com muita vontade de sobreviver usou a razão para planejar sua sobrevivência num ambiente totalmente inóspito. Acompanhamos o dia-a-dia de Pi e vemos sua preocupação em checar duas vezes por dia, pelo menos, os nós que prendem a sua jangada improvisada ao barco. Vemos o cuidado que ele tem com as provisões. O desespero nos dias de maior fome, levando a comer coisas impensáveis, logo ele, um vegetariano convicto.
E se a figura de um milhão de suricatos levantando-se e abaixando-se em sincronia é incrível, ao menos o autor (ou Pi, que conta a história) descreve a ilha com um cientificismo fascinante, levantando hipóteses palpáveis para o canibalismo das algas e para o excessivo número de suricatos.
Ao final do livro, o golpe de mestre é a segunda história narrada por Pi para os emissários japoneses. E então, qual a versão verdadeira? Não importa realmente, diz Pi, se o resultado acabou sendo o mesmo: ele sofreu, sua família morreu, o navio afundou. Assim é com Deus, arremata ele, misteriosamente.
A vida de Pi consegue lidar com espiritualidade sem ser piegas nem fazer proselitismo. Ao mesmo tempo, conta a história de dois sobreviventes improváveis: Richard Parker e o jovem Piscine Molitor Patel.