Filipo.Ludema 10/10/2022
cxvi - uma viagem a citera
Meu coração, um pássaro, volteava airoso
E livremente em torno aos cordames planava;
O navio, sob céu sem nuvens, ondeava
Como um anjo embriagado por um sol radioso.
Que ilha é essa, triste e negra? – É conhecida
Como Citera, célebre pelas canções,
Eldorado banal para alguns solteirões.
Mas, vejam – é só uma terra empobrecida.
– Ilha de enredos leves e de festas da alma!
Da Vênus ancestral o espectro luminar
Como um aroma plaina acima de teu mar,
E insufla nos espíritos amor e calma.
Ilha de mirtos verdes e flores viçosas,
E sempre venerada por qualquer nação,
Onde suspiros de almas em adoração
Rolam tal como o incenso em um jardim de rosas
Ou o som de um torcaz para sempre a arrulhar!
– Citera eram desertos pobres, perturbados,
Além de pedregosos, por gritos afiados.
Eu no entanto entrevia um objeto invulgar!
Não era um templo em meio a sombras pastorais,
Onde a sacerdotisa, que adora flores,
Ia, o corpo queimado de ocultos ardores,
Entreabrindo o vestido às brisas casuais;
Mas como íamos rente à terra, costeando,
Para com as velas brancas perturbar as aves,
Vimos tratar-se de uma forca de três traves,
Contra o céu, tal cipreste, em negro se avultando.
Feras aves pousadas em sua comida
Destruíam um enforcado como que maduro,
Plantando a ferramenta de seu bico impuro
Onde quer que sangrasse carne apodrecida;
Os olhos, dois buracos; do ventre estripado
Seu intestino pelas pernas lhe corria;
E os carrascos, saciados com a atroz iguaria,
Haviam-no a bicadas de fato castrado.
A seus pés, uns quadrúpedes ambiciosos;
De focinho para o alto, o rebanho rondava;
Um animal maior no meio se agitava
Tal um executor com auxiliares ciosos.
Morador de Citera, filho de céu tão
Belo, em silêncio tu sofrias os insultos,
Como em expiação de teus infames cultos,
Das faltas que proibiram tua inumação.
Ridículo enforcado, as dores com que brigas
São minhas! Senti, vendo teus membros pendentes,
Subir, tal como um vômito, até os meus dentes,
O longo rio de fel dessas dores antigas;
Diante de ti, meu pobre-diabo tão prezado,
Suportei maxilares e bicos cruciantes
Com que panteras-negras, corvos lancinantes
Trituravam-me a carne de muito bom grado.
– Com um céu sedutor e um mar que reluzia,
Tudo era para mim sangrento, negro, avesso;
Meu coração estava, como que num espesso
Sudário, amortalhado nessa alegoria.
Em tua ilha, Vênus, só pude encontrar
De pé a forca simbólica onde minha imagem
Pendia... – Ah! Senhor! dai-me força e coragem
Para sem asco meu corpo e alma contemplar!