Reccanello 23/01/2024O grande épico americanoConsiderado como o grande épico norte-americano (muitos comparam a obra à própria Odisseia de Homero, sendo Huck Finn, como Odisseu, um arquétipo do herói que busca compreender seu lugar no mundo e desafia convenções sociais), "As Aventuras de Huckleberry Finn", de Mark Twain, nos leva por uma narrativa que, conquanto à primeira vista pareça uma típica e simples aventura infanto-juvenil às margens do rio Mississippi, em realidade transcende todas e quaisquer expectativas ao explorar temas muito profundos e adultos como o racismo, os valores da liberdade e da amizade e o desafio de romper com valores sociais pré-estabelecidos e sem sentido.
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Desde seu início, o livro destaca e evidencia a genialidade de seu autor, Mark Twain, na forma como ele tece a jornada de Huck Finn, um protagonista que, mesmo sendo um típico menino branco do sul escravagista dos EUA na metade do séc. XIX, cativa os leitores com sua inteligência e compaixão. Com sua narrativa em primeira pessoa - praticamente uma "auto-biografia" do protagonista - o livro proporciona uma visão única das experiências de Huck, destacando - porém, e é importante que se diga isso, sem qualquer legitimação! - o arraigado racismo da sociedade sulista da época, que se denota e destaca pelo uso constante da famigerada palavra "nigger". Pedra angular na polêmica que sempre envolveu a obra desde sua publicação original, é crucial compreender a contextualização histórica do uso daquela palavra, sem deixar de lado a importantíssima e fundamental evolução do personagem Jim ao longo da trama. Além disso, é impossível não analisar a obra pelo viés do desenvolvimento moral de Huck, que consegue ultrapassar e vencer os preconceitos iniciais típicos de sua sociedade e forma um vínculo profundo de amor e afeto com Jim, destacando uma mensagem positiva subjacente. É, enfim e por qualquer ângulo que se perceba, um romance de formação marcado pela superação de valores pré-estabelecidos, refletindo a forte e característica crença de Mark Twain de que "um coração sadio é um guia mais seguro do que uma consciência mal treinada".
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Não posso deixar de mencionar a controvérsia existente em torno dos capítulos finais. A chegada de Tom Sawyer e as situações subsequentes podem parecer uma mudança brusca de tom, mas, como Ernest Hemingway apontou, são um aspecto que desafia as expectativas e adiciona complexidade à narrativa, ainda que a divergência de opiniões sobre esses capítulos finais ressalte a subjetividade na interpretação da obra.
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A riqueza desta edição específica, especialmente com a tradução e os textos de José Roberto O’Shea, é essencial para preservar a autenticidade linguística, embora alguns críticos possam questionar a vulgaridade que permeia a obra. As ilustrações de E.W. Kemble e os elementos adicionais enriquecem a experiência de leitura, oferecendo insights sobre o contexto da época e a vida do autor.
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"As Aventuras de Huckleberry Finn" permanece, enfim, como uma obra fundamental na literatura norte-americana, desafiando leitores a confrontar a dura realidade da sociedade da época, sendo a controvérsia em torno do livro, em si mesma, um reflexo do desafio que o livro apresenta: mergulhar nas águas turbulentas da história e da moralidade, questionando e evoluindo, assim como seu intrépido protagonista nas correntezas do Mississippi.
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