Ricardo Santos 01/10/2017Maravilhosa aventura literáriaA série de livros Aubrey/Maturin se tornou minha nova paixão. Eu vi o filme Mestre dos Mares, com Russell Crowe e Paul Bettany, lá em 2003. Lembro de ter sido uma das minhas melhores experiências numa sala de cinema. O filme de Peter Weir tem um ritmo fantástico e personagens cativantes, mas peca por focar na ação, deixando de lado muita coisa das sutilezas dos personagens e do contexto da época. O roteiro foi baseado em alguns volumes da série escrita por Patrick O´Brian. Este é um tipo de material que seria melhor explorado num série da HBO ou Netflix.
Mestre dos Mares, o livro, é a primeira aventura do capitão da marinha real britânica Jack Aubrey e de seu médico de bordo Stephen Maturin, durante as Guerras Napoleônicas, no século 19. Gosto de livros de aventura, clássicos e contemporâneos, ficção e não-ficção. Mas o que torna a série de O´Brian tão especial é seu caráter híbrido. O autor tem ambição literária sem perder de vista a diversão do leitor.
Muitos identificam uma forte influência de Jane Austen em O´Brian. O que foi confirmado mais de uma vez pelo próprio. E realmente essa influência é bem perceptível no humor cheio de ironia, nos comentários que os personagens fazem uns dos outros, na maneira como as regras sociais são determinantes (aqui, no caso, na hierarquia da marinha britânica da época), e no uso de cartas e diários como recursos para o leitor conhecer mais diretamente a personalidade de cada um.
A série tem muitas qualidades. O que logo chama atenção é a obsessiva pesquisa histórica, a marca registrada de O´Brian. Ela está em cada linha desses livros, mas a genialidade dele permite que a pesquisa não se torne exagerada. Ela sempre está ali para funções narrativas. No início, os termos náuticos podem causar um baita estranhamento no leitor. Mas sua paciência será recompensada.
O worldbuilding aqui é fascinante. Aos poucos, dá para se familiarizar com alguns termos e condutas. Buscas na internet melhoram a compreensão do que acontece durante as batalhas navais. A autora de fantasia e FC Jo Walton é fã da série justamente pela prosa imersiva de O´Brian, pela atmosfera da vida no mar e na marinha britânica, elaborada de maneira tão convincente. Para ela, o mundo criado por O´Brian não é muito diferente dos mundos alienígenas de C. J. Cherryh, por exemplo. Outro fã da série é Kim Stanley Robinson.
Outro elemento de sucesso (para muitos o mais importante, como eu também acho) são os personagens. A começar pelos protagonistas. Jack Aubrey não é um machão típico. Ora ele é viril, capaz e confiante. Ora é patético, depressivo e vulgar. Um marinheiro desde garoto com um talento para o violino. Seu humor é impagável. Já o doutor Stephen Maturin é mais um tipo intelectual, interessado em Ciências Naturais e Política, e parceiro musical menos talentoso de Jack, quando toca seu violoncelo. Seu humor é mais irônico e seus insights sobre vários temas são deliciosos de acompanhar. Há também todo um elenco de personagens secundários riquíssimo e igualmente cativante. Por menor que seja a participação cada de um deles, ela nunca será rasa.
Outro elemento de destaque é a prosa de O´Brian. Sua linguagem é vívida, seus diálogos são pertinentes, mesmo os mais inverossímeis e longos. Sua habilidade em mudar sutilmente o ponto de vista de um protagonista para outro protagonista ou para um coadjuvante, no intervalo de uma página ou mesmo de um parágrafo, é notável. Ele também é geralmente bem sucedido quando demora mais numa cena importante, detalhando-a melhor ou resolve mais rapidamente a cena seguinte, passando de uma sequência para outra em cortes quase cinematográficos, apesar do clima de literatura do século 19. Por isso, mesmo com a incompreensão dos termos náuticos, o ritmo do texto é preservado e, muitas vezes, é empolgante, pelo suspense ou pela ação.
Mestre dos Mares foi publicado originalmente em 1969. A série é composta por 20 romances completos e um inacabado, este último publicado em 2004, após a morte de O´Brian em 2000. Por causa do filme, foram editados por aqui, pela Record, os seis primeiros livros e o décimo. Em 2015, a Record relançou Mestre dos Mares numa edição de bolso. Sem previsão de relançamento dos demais volumes, restam aos interessados os sebos. Há uma edição gringa em e-book de todos os livros com preços que alguns alguns acharão razoáveis, outros, caros. Recentemente adquiri em sebos todos os livros editados no Brasil: Mestre dos Mares (1° livro), O Capitão (2° livro), A Fragata Surprise (3° livro), Expedição à Ilha Maurício (4° livro), A Ilha da Desolação (5° livro), O Butim de Guerra (6° livro) e O Lado Mais Distante do Mundo (10° livro). Além de ter comprado as versões em e-book de The Surgeon´s Mate (7° livro), The Ionian Mission (8° livro) e Treason´s Harbour (9° livro). Já estou no terceiro volume e a série só melhora. Em Mestre dos Mares, quase não existe trama. Praticamente é uma sucessão de aventuras no mar. A partir de O Capitão, tudo se torna mais complexo, com tramas mais elaboradas. Recomenda-se a leitura na ordem de publicação. A série cobre um período de mais ou menos de 15 anos na vida dos protagonistas. Cotejei as edições nacionais com trechos das edições em inglês e posso dizer que as traduções são muito competentes, com supervisão técnica e pouquíssimos erros de revisão.
A série Aubrey/Maturin é muito especial por conseguir reunir, de maneira brilhante, apuro literário e divertimento.