Oz 29/01/2018
Uma das grandes virtudes de um livro é permitir uma viagem a lugares distantes, lugares desconhecidos, lugares inacessíveis. Pois um livro em que ambos escritor e história nos remetem ao Afeganistão é, por si só, um chamariz perfeito ao leitor-viajante que, na vida real, pensaria duas vezes antes de se lançar em uma viagem destinada a esse país imerso em conflitos armados. E que já fique avisado o leitor: se o livro é uma viagem a esse país, também é, por consequência, uma viagem aos seus conflitos.
Não se engane: não é um livro sobre os conflitos da guerra. Não se engane duplamente: também não é uma viagem pelas paisagens inóspitas do Afeganistão. Não. Atiq Rahimi nos confina a uma casa, uma mulher, seu marido vegetal e suas duas filhas. Outros personagens, vez por outra, entram no recinto, trazendo, cada um à sua maneira, as marcas do que vem do lado de fora: a violência, a intolerância religiosa e a insanidade que sobrevêm a tudo isso. Ficamos confinados dentro dessa pequena casa, o que nos obriga a fazer um outro tipo de viagem afegã. Nossa viagem é muito mais intimista, pois vamos a um Afeganistão que talvez seja ainda mais inacessível do que aquele que idealizamos em nossas mentes, o Afeganistão das armas. O que vamos conhecer é o Afeganistão do silêncio, dos conflitos internos femininos, nos quais descobrimos segredos que merecem um lugar ao sol, embora não mereçam ser fotografados, porque fotografar a dor alheia talvez não seja a melhor forma de lidar e relembrar alguns tabus por anos esquecidos.
Esses segredos dolorosos advêm de nossa protagonista, uma mulher afegã submetida à cultura de extrema rigidez do islã. Seu marido, um suposto herói do combate armado da guerra santa, jaz no canto da sala em estado vegetativo, com uma bala alojada na nuca. As duas pequenas filhas não entendem o que se passa com o pai que permanece deitado, imóvel, ainda que de olhos abertos. Ele respira, lentamente, e sua mulher passa a contar o tempo através de suas respirações e das voltas que dá nas contas do terço. Aproveitando a imobilidade do marido, ela passa a falar de todos os seus sofrimentos, receios e anseios. É a primeira vez que consegue fazê-lo ouvir. Somos colocados como se estivéssemos ali ao lado do moribundo, como confidentes dos terríveis segredos dessa mulher. A certa altura, ela nos conta uma história – que foi contada a ela por seu sogro – a respeito de uma pedra negra mágica, diante da qual a pessoa pode se lamentar por todos seus sofrimentos e dores, até que, finalmente, a pedra estoura, estilhaça, libertando o indivíduo desses seus tormentos. Essa é a syngué sabour, a pedra-da-paciência que dá nome ao livro.
A essa altura, já deve estar bem clara a analogia entre a história da pedra e a história da própria mulher. Os problemas vão aumentando, as memórias vão surgindo, novas revelações vão aparecendo e nós ficamos com uma constante dúvida sobre onde essa viagem ao interior dos interiores do Afeganistão irá nos levar. Esperamos a pedra da mulher estourar e isso, talvez, seja o único defeito do livro, que nos põe em uma posição amarga de um ouvinte fixo - lembrando que viajar sentado também cansa. Mas isso é apenas um contratempo, pois estamos à espera da ruptura, dos estilhaços que, no fim, machucam, mas também libertam.
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